A primeira vez que andei de avião foi nessa semana. Mais especificamente na noite de terça-feira. Foi aos 32 anos de idade, sozinha. Um voo longo. Transcontinental: Lisboa-São Paulo. Assustador.

Na verdade, eu já tinha andado de avião algumas vezes. Umas 300 vezes – ou até mais. Mas isso foi numa outra vida (ou seria num outro planeta?). Foi num tempo em que pessoas se abraçavam, tempo em que quase ninguém tinha álcool em gel na bolsa e as máscaras moravam dentro de centros cirúrgicos.

Nessa vida, foi a primeira vez. Nada era como eu conheci outrora. Nem o check-in, nem o detector de metal, nem a fila do passaporte, nem o embarque, nem as lojinhas do aeroporto, nem o número do voo que eu sempre pegava. Tudo era estranho, como em filmes de ficção científica, nos quais o protagonista acorda numa outra era e não reconhece nada do que vê, enquanto caminha atónito por lugares desconhecidos.

As pessoas se olhavam com desconfiança. Seus olhos diziam claramente: “São eles. São eles os que podem me transmitir a doença”. Todos eram inimigos, inclusive eu. E inclusive eles. Nas filas, as pessoas olhavam para trás, medindo distâncias, buscando segurança física com a força do olhar.

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Meu tradicional voo TP87 virou TP2553. Número longo, coisa estranha. Me lembrei de Dark, da Netflix. As mesmas coisas, mas com nomes novos, aspetos familiares, porém, ainda desconhecidos. A caminho da aeronave, minha mala de carrinho me servia de escudo: colocava-a atrás de mim, para garantir que a pessoa seguinte não se aproximasse demais.

Mas devo dizer, ao entrar na aeronave era visível no olhar dos comissários a satisfação por nos ver. Era como se reencontrassem um conhecido pouco íntimo, mas que lhes era muito caro. Um olhar verdadeiro de “que bom que vocês vieram”. Talvez seja saudade. Talvez seja instinto de sobrevivência. Tanto faz. Era bom, me senti bem-vinda.

Nunca fiquei tão feliz por não haver ninguém sentado por perto. Eu estava diferente. Aquela pessoa, de fato, nunca tinha andado de avião. A velha Ruth tinha alguma curiosidade com as pessoas que se sentavam na fileira ao lado. Cronista, buscava histórias. Essa Ruth não queria saber de história nenhuma. Só queria distância. Só queria estar sozinha para não ter medo. A velha Ruth não tinha medo.

Andei de avião pela primeira vez. O comissário teve paciência comigo. Eu tive paciência com ele. Não nos entendíamos foneticamente através das máscaras. Uma simples resposta como “vinho tinto, por favor”, tornou-se num desafio inédito. Mas tudo bem. Estávamos felizes por estar ali.

Cheguei bem a São Paulo. É a primeira vez que venho para essa cidade. Eu nasci aqui, em 1988. Vivi aqui até 2014. Entre dezembro de 2014 e agosto de 2020 vim a São Paulo cerca de 25 vezes. Mas essa é a primeira vez que venho a São Paulo. Estou curiosa. Estou com medo. Estou feliz. Não conheço nada. Nem a cidade, nem a mim mesma. É uma boa oportunidade.