Já é sina: não há sábado que a meio do texto não me caia um escândalo. Estava eu de volta desta sequência de títulos qual cavalgada heróica para o desastre:

29 de Setembro de 2017: Número de professores aumenta pela primeira vez nesta década
15 de Outubro de 2017: Professores vão passar a entrar no quadro ao fim de três anos a contrato
15 Novembro 2017: O Governo vai recuar e prepara-se para negociar com os sindicatos a contagem dos mais de nove anos de serviço que estiveram congelados
18 de novembro de 2017: Polícias e militares exigem progredir como os professores
18 de novembro de 2017: O PCP defendeu hoje a contagem do tempo para a reposição salarial deve ser alargada a mais setores da função pública, além dos professores, que conseguiram um acordo com o Governo esta madrugada.

Estava portanto a perceber quando chegará o dia em que os trabalhadores do sector privado vão ter as suas carreiras descongeladas, as suas progressões automáticas, as suas 35 horas e outras tantas e fatais maravilhas (no sentido orçamental e não camoneano do termo) quando constatei que as forças vivas da Nação de novo se mobilizavam para protestar e lutar contra uma ignomínia: a morte de um cabrito num congresso.

A semana passada foi o jantar no Panteão, jantar esse que ninguém sabia que ia acontecer e que era uma afronta à nossa História. Afronta essa que, note-se, não existia até umas pessoas nas redes sociais se terem mostrado indignadas e logo o nosso primeiro-ministro se ter indignado também, acabando a a indignar-se António Costa consigo mesmo pois também ele promovera jantares no Panteão enquanto autarca.

Mas voltemos à indignação desta semana: o abate de um cabrito num congresso. Dada a estupefacção pela morte do animal supor-se-ia que se tratava de um congresso de mecânicos, informáticos ou de artistas de unhas de gel. Nada disso: era um congresso de cozinheiros. E pode perguntar-se: os cozinheiros cozinham cabrito? Sim. Os restaurantes servem cabrito? Sim. As pessoas comem cabritos vivos? Não. Então os cabritos servidos nos restaurantes ou que cozinhamos nas nossas casas morreram naturalmente de velhos? Também não. Logo os cabritos que comemos em nossa casa e nos restaurantes são mortos? Sim.

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Então porque é notícia a morte de um cabrito num congresso de cozinheiros? Porque mediaticamente falando o evolucionismo deu lugar à “cuvetologia”, a teoria que explica que as espécies consumidas pelos seres humanos nascem nas cuvetes dos supermercados ou nas cestinhas dos mercados ditos biológicos.

A “cuvetologia” é uma espécie de creacionismo sem Deus, em que os animais nascem já devidamente seccionados, embalados e rotulados. E tal como se ignorava a forma como Deus criara a vida também agora se encontram ocultos pelo dogma do mistério os passos que precedem a passagem da vaca propriamente dita até ao formato bolonhesa.

A “cuvetologia” tornou-se a fé dominante em todos os meios de comunicação, mundo de pessoas giras, redes sociais… E ai de quem não se declarar devoto dos preceitos da seita pois logo acaba entre os penitentes do auto-de-fé da semana. Assim no artigo que o Expresso dedicou à “matança de cabrito em congresso de cozinheiros” descobre-se que vários participantes nesse congresso – de cozinheiros, sublinhe-se, não de tradutores – mostraram o “incómodo provocado aos seus sentimentos” pelo facto de no dito congresso um cozinheiro ter abatido e desmanchado um cabrito. Nem sei o que sentiria esta gente caso no mesmo congresso se tivesse confeccionado um prato de enguias quando constatassem que as ditas são amanhadas vivas. (Talvez não sentissem nada que os cuvetólogos são muito selectivos nas suas sensibilidades).

À descrição dos cozinheiros cujos sentimentos ficaram incomodados com a morte do cabrito, junta o artigo em questão a informação relevante de que no facebook do congresso podem “ver-se fotos do evento, entre estas a do cabrito esfolado” (como se os cabritos alguma vez tivessem sido confeccionados sem ser esfolados!) e, como não poderia deixar de ser, que a ASAE foi chamada a intervir não se percebe ao certo para averiguar o quê já que a nem a segurança alimentar esteve em risco – o animal não foi consumido – e a segurança económica não foi para ali chamada: o cozinheiro que resolveu mostrar no dito congresso como o abate e a desmancha são essenciais para se obter um bom prato de cabrito (coisas que qualquer pessoa que já cozinhou cabrito está fartinha de saber!) é também produtor, logo não comprou o animal a ninguém. Até acrescenta o dito cozinheiro-produtor que “levou a carne para casa como a lei prevê”.

Santa ingenuidade, esta de achar que se faz tudo como a lei prevê. Afinal a lei prevê sempre algo mais e no que respeita à vida fora da bolha citadina onde os animais nascem nas cuvetes e ser amigo da Natureza é sinónimo de ser vegetariano, a lei prevê coisas assombrosas. Por exemplo, a lei impõe que os animais sejam abatidos nos matadouros (de facto, como muita gente só descobre ao chegar à vida adulta, os animais não nascem nas cuvetes e antes de lá chegarem passam pelos matadouros). Mas admite o benemérito legislador que os produtores criem animais para seu auto-consumo – seria aqui que entraria o caso do cozinheiro do congresso que se presume consumiu o animal na sua casa.

Mas isto era demasiado simples. O legislador, ser iluminado que acha que faz evoluir as mentalidades e que, à força de duas directivas, uma lei, quatro portarias e um decreto, ainda há-de fazer nascer dinheiro e quiçá frangos, estabeleceu que no caso dos caprinos para auto-consumo estes têm de ser abatidos antes de terem completado um ano de idade. (Estou em choque gastronómico-jurídico: a cabra velha de uma certa xanfana que trinquei há algum tempo não era uma delícia! Era um caso jurídico! Um cúmulo de ilegalidades!)

Mas adiante que o caso não acaba aqui. Segundo explica um veterinário contactado pelo Expresso a propósito da “matança de cabrito” “nas instalações da antiga Feira Internacional de Lisboa” (se fosse nas instalações de um pavilhão em Trás-os-Montes o choque de sentimentos também aconteceria?) “se for para auto-consumo do produtor, este tem de fazer um requerimento na Câmara, pagar uma taxa e assim ir lá o veterinário fazer a inspecção”,

Estão a ver aquela conversa sobre as populações coitadas que tinham de fazer não sei quantos quilómetros porque o tribunal da vila tinha fechado? Um horror. Já cada um ter de ir à câmara, tratar de uma licença e pagar uma taxa para poder fazer o almoço de Domingo, isso é o progresso!

Por fim mas não por último: comer cabrito (depois de morto, esfolado e amanhado, porque infelizmente vivo e com pele não se lhe consegue meter dente) é aquilo que de mais eficaz cada um de nós pode fazer para combater os incêndios. Como lembrou o arquitecto paisagista Henrique Pereira dos Santos, alguém que conhece bem o país que fica para lá do mundo urbano-chic da “cuvetologia”: “Viriato era pastor, não era lenhador”. Ou seja, para combatermos os incêndios temos de “revitalizar as fileiras económicas que gerem os matos”. O que passa por comer cabrito, um animal que não nasce nos supermercados mas sim no campo e tem a capacidade de limpar os terrenos daqueles materiais que a cada Verão contribuem para transformar Portugal num braseiro.

Portanto comamos o cabrito legalmente possível e guardemos naquelas prateleiras recônditas onde antigamente se guardavam as revistas pornográficas esse best seller do mundo editorial português, essa prenda que candidamente oferecíamos às nossas mães, mas que não tarda acabará a ser comercializado com o aviso de “cenas e receitas eventualmente chocante”, que é o livro “Cozinha Tradicional Portuguesa” de Maria de Lourdes Modesto. Nem sei como os cozinheiros sentimentais aguentarão ver o que para ali vai de desmancha de porco, amanho de enguias, espetadas de vaca…

E mais não escrevo porque há horas que estou nisto e caíram-me os olhos e o estômago numa foto de leitão assado.