O grande feito das democracias não é o direito de voto; é a saída pacífica do poder da parte de quem perde. O respeito pelos resultados eleitorais, o saber ganhar e o saber perder. Aceitar uma derrota não é fácil quando as expectativas são elevadas, menos ainda se se está no governo há muitos anos, décadas, e a sala onde se decide se confunde com a sala de estar onde se repousa.

Saber ganhar e saber perder são duas faces da mesma moeda. Ambas pressupõem contenção. Quem ganha deve conter a impetuosidade da vitória e quem perde a desilusão da derrota. Uma e outra, devidamente geridas, conduzem ao ganho da dignidade que atrai o respeito dos demais. Parece uma frase feita, mas foi a percepção desta realidade (que a dignidade impõe respeito) que tornou possível o refreamento dos conflitos. A maior conquista das democracias foi conseguida com honra e brio de mulheres e homens, não por anjos imaculados.

Isso significa que a saída pacífica do poder não está garantida para sempre. É algo a que devemos dar atenção e lidar com cuidado. Assistimos à degradação dessa prática na reacção de Donald Trump à sua derrota eleitoral em Novembro de 2019 e não sabemos como vai ser no Brasil, caso Bolsonaro perca. Da mesma forma, a respiração está suspensa em Angola com o MPLA a clamar vitória e a UNITA a alegar ilegalidades. A saída do poder é mais complicada nas cleptocracias porque os interesses do Estado e o dos governantes se confundem ao ponto de se tornarem indistinguíveis. Não é difícil imaginar o que deve ir na cabeça dos governantes em Luanda, bem como dos vários ’empresários’ que enriqueceram, não devido ao funcionamento do mercado, à livre escolha dos cidadãos, mas em virtude das relações privilegiadas que tiveram com o poder.

Se é verdade que a dificuldade de Trump em assumir a derrota se deveu ao seu egocentrismo, o que sucedeu nessa altura é um aviso que deve ser levado em conta. Uma das vantagens das democracias é não favorecer, não ver com bons olhos, o egocentrismo. A confusão entre força e falar alto, entre firmeza e prepotência, entre autoridade e autoritarismo atenuou-se perigosamente. São comportamentos intoleráveis nas relações pessoais, inaceitáveis em quem exerce o poder político.

Em Portugal, a realidade é muito diferente da angolana. Longe vão os tempos em que sindicatos próximos do PCP cercaram a Assembleia Constituinte. Da mesma forma, não é expectável que passe pela cabeça dos dirigentes socialistas recusarem-se a abandonar o poder quando perderem as eleições. O certo é que a nossa democracia não tem a idade nem a experiência da norte-americana e o cuidado é pouco nesta matéria. Um alerta para isso mesmo foi o que sucedeu há um ano quando o PS perdeu as eleições em Lisboa. Apesar de Fernando Medina ter de imediato reconhecido a derrota, esta ainda custa a muitos socialistas que não vêem em Carlos Moedas um presidente da câmara, mas alguém que lá está de passagem. Talvez por isso, porque se tratou de um percalço, e não de uma derrota eleitoral, Fernando Medina não fez a travessia do deserto tão habitual noutros tempos. João Soares, quando perdeu para Santana Lopes, viajou ao Pólo Norte para arejar as ideias; Já Medina aterrou na pasta das finanças, por sinal a mais importante em qualquer governo. A sua derrota não o afastou do exercício do poder; foi um contratempo que o forçou a que o exercesse noutro lugar. Foi um pequeno sinais de falta de desapego que nos devem levar a estar atentos para que o pior não aconteça. Até porque se quem perde não sai, de que serve ir votar?

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