Um dos problemas do nosso parlamento é estar desprovido de capacidades técnicas, de uma mistura saudável e equilibrada de saberes, que abranjam a parte mais relevante das necessidades de uma sociedade; a saúde, a segurança social, a segurança pública, a defesa, a justiça, as finanças, a agricultura, a educação –que vai faltando com amiúde –, as relações internacionais. Temos um parlamento com uma maioria de deputados que são apenas “curiosos”, frequentemente falhos de senso, quase sempre cheios de prosápia, quando lá vão, e só raramente com sentido de médio ou longo prazo.

Dito isto, sendo um fervoroso defensor da democracia parlamentar e do sufrágio universal periódico, ao contrário da matriz ideológica de dois dos partidos que suportam o Governo de Costa & Cia., o PCP e o BE, tenho de aceitar que a Assembleia da República é soberana para fiscalizar e apreciar a atuação do Governo, fazer recomendações e autorizar a despesa pública.

Contudo, este défice técnico da Assembleia, uma forma de défice democrático, poderia ser colmatado com o apoio técnico que lhes vai faltando, com capacidade de organização que passaria por mais tempo em trabalho de estudo e menos retórica, por maior maturidade democrática e sentido de serviço público.

Logo à partida, aproveitando o facto de não termos círculos uninominais, as listas de cada partido deveriam contemplar uma estratégia de provimento de capacidades técnicas e não a satisfação de promessas pessoais locais, de promoção de jovens desempregados, de retribuição de favores na angariação de voto ou de supostas lealdades políticas que nada têm de ideológico ou de alinhamento programático. Note-se que nenhum partido está imune a este estado de coisas que a nossa democracia foi construindo. Ressalve-se que o problema não é exclusivamente nacional e nem seria resolúvel pela passagem do método de Hondt para qualquer outra matemática de atribuição de mandatos. É um problema de conceção da vida dos partidos políticos, do valor que as gerações de hoje não dão à actividade política, relegada para os confins da desonestidade humana, da falta de exemplo a partir de quem dirige os partidos e de uma democracia que vive dos votos de eleitores ignorantes, porque ninguém os informa ou, simplesmente, já nem querem saber.

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O exemplo mais recente de tudo isto foi a aprovação inusitada de alterações ao plano nacional gratuito de vacinações (PNV), que já é um dos melhores do mundo, em sede de Orçamento do Estado. Em primeiro lugar, a Lei do orçamento tem vindo a tornar-se num saco de oportunidades para meter legislação avulsa que não é mais do que marketing partidário. Não faz mal porque o ministro das Finanças corrige o que quer, como quer, logo em janeiro, com o Decreto-Lei de execução orçamental, o tal que tudo cativa e não deixa nada. Em segundo lugar, é um precedente perigoso, tecnicamente não sustentado e decidido à revelia da agência estatal com responsabilidades sobre o PNV, a DGS. Em terceiro lugar, na forma como foi decidido e dito que foi pensado, esta alteração ao PNV deixa a sensação de ter, mais uma vez, respondido a um lobby ou grupo de pressão. Em quarto lugar, é uma decisão injusta face a outras prioridades de saúde que possam existir, já que à Assembleia da República deve caber o papel de autorizar gastos e não de definição de prioridades políticas, estas últimas da responsabilidade do Governo. Em quinto lugar, este tipo de decisão política, legítima mas irracional, iliba o Governo do cumprimento de outras obrigações. O Ministério da Saúde poderá dizer, daqui para a frente, “nós até gostaríamos de ter gasto mais na saúde mental – um mero exemplo de problema globalmente negligenciado — mas fomos comprar as vacinas que nos mandaram comprar”. Em suma, um desastre que apenas radica em demagogia e oportunismo político. Como diria Graham Greene, agora que os nossos deputados tiveram uma ideia, “eles são perigosos porque têm uma ideia, não sabem qual, mas têm uma ideia”.

Se queriam encarar a política nacional de vacinação gratuita, excelente ideia, talvez tivesse sido melhor encarregarem-se de elaborar, como acontece em tantos parlamentos democráticos por esse mundo fora, um relatório técnico sobre o assunto e apresentar recomendações. A Assembleia da República tem de ser dar ao respeito e isso conquista-se com muito trabalho, tal como se perde numa meia tarde de plenário.

Não que seja errado vacinar mais pessoas e para mais doenças. Nada disso. Teria sido mais interessante a AR legislar sobre a vacinação obrigatória para acesso ao sistema de ensino ou ao funcionalismo público. É controverso, bem sei, mas a Assembleia, tão lesta a querer discutir a eutanásia, poderia gastar uns minutos de cerebração a discutir formas de aumentar a vida saudável da população. E, refira-se, eu próprio tenho dúvidas sobre a eficácia real da vacinação obrigatória ou, outro exemplo, das taxas sobre bebidas açucaradas, na forma em que existem em Portugal, assunto que os nossos deputados beberam sem pestanejar. Era doce, entende-se.

A verdade é que, há poucas semanas, o parlamento pretendia discutir a possibilidade de proibir a prescrição de metilfenidato, como se este medicamento fosse mais uma anfetamina qualquer e não um remédio útil para quem dele precisar, as pessoas com diagnóstico confirmado de défice de atenção e hiperactividade. E, no pacote da saúde, também se pretendia agora incluir a obrigatoriedade de dispensa gratuita de um medicamento para uma degenerescência neurológica. Quase que me atreveria a propor a deslocalização do INFARMED para S. Bento. Não, não é a estação ferroviária do Porto.

O pior disto tudo é que há portugueses que necessitam de medicamentos, já disponíveis internacionalmente, e não os podem tomar porque o INFARMED não autoriza a sua prescrição nos Hospitais do SNS, ou não acelera os processos de atribuição de preço para o SNS. Sobre isto, a Assembleia mantém um silêncio impressionante e, diga-se de passagem, muitas Sociedades Científicas médicas também.

Pior, a ADSE paga a hospitais privados, com preço acrescido de “taxa” de serviço, os medicamentos a que os doentes “normais” não têm acesso no SNS. Que privados e companhias de seguros não se importem de remunerar os médicos e instituições com uma percentagem sobre os medicamentos prescritos, é um problema delas, mas que o seguro público o faça já é um problema de Estado. Que haja pagamentos a médicos, em hospitais privados, que envolvam percentagem sobre os medicamentos prescritos, é um problema ético, não necessariamente ilegal, que competirá à Ordem dos Médicos investigar. Nos EUA é a prática generalizada em Oncologia. As contas são empoladas com acréscimos sobre o preço de compra, acréscimos que se cobram aos clientes. Em Portugal seria interessante investigar o que sucede. Se acontecer, não estou certo de que não possa haver zelo prescritivo inusitado.

Mas há mais. Como já anteriormente escrevi, perante a apatia da senhora ministra da Saúde, das associações de doentes e utentes que, nos tempos da Tróika tão prestimosas foram a invetivar o Governo, e da comunidade médica em geral, há doenças a quem já foi permitido o recurso a determinados medicamentos e que, desde agosto de 2018, já não podem ser tratadas da mesma forma. Há tratamentos de manutenção em doenças oncológicas mortais, como é o caso do mieloma múltiplo, a quem o acesso é agora negado com o argumento de que o melhor é manter observação e ver o que acontece, mesmo que isso determine um maior probabilidade de morrer mais cedo. Inacreditável? Não. É verdade.

Nos tempos da Tróika havia sentido de priorização e os medicamentos verdadeiramente úteis foram aprovados, com acordos que salvaguardaram o interesse de todos os cidadãos. Havia normas transparentes sobre quem poderia aceder a um programa de autorizações excepcionais (AUE) e não se confiava, como agora, na decisão iluminada de um perito anónimo que se pronuncia sobre a vida ou morte de um doente que nunca viu. E, se forem dois peritos, ou um só perito com problemas de memória, até pode recomendar a autorização para um doente e recusar para outro que seja em tudo semelhante ao anterior. Mentira? Não. É verdade.

Tenha-se em atenção que o pedido de utilização excecional de um medicamento resulta de uma decisão colegial de especialistas do SNS, validada pela Comissão de Farmácia e Terapêutica do Hospital público e que podem ser, todos eles, desautorizados por um médico que se esconde atrás do INFARMED, que ninguém pode saber quem é, podendo até ser uma pessoa que não tem competências relevantes na patologia que avalia. Reconhecendo que não fiz tudo o que deveria ter feito por mudar estas leis, sinto a obrigação médica e política de pedir que se revisite, com urgência, todos estes processos que têm de ser alterados.

Este é um debate vital e incontornável para a sustentabilidade do SNS. Que medicamentos poderemos pagar, como, quando, quais as prioridades? Como devemos fazer a avaliação das novas tecnologias, incluindo medicamentos? Como permitir aos doentes o recurso das decisões do Estado que os possam prejudicar? Vamos precisar de uma prestação de saúde judicializada? Teremos de ir a tribunal para dirimir o direito a ser tratado?

Como deve o Estado lidar, antecipadamente, com as nossas necessidades e a oferta de medicamentos que a indústria quer vender? Precisamos de todos? Seguramente, não! Há uns mais urgentes, sem dúvida. Não deveríamos ter uma política transparente de prioridades para aprovação de medicamentos? Não deveríamos acabar com os preços secretos, os reais, que o Estado paga pelos remédios, apesar de publicamente haver um preço legal diferente, exactamente para proteger o mercado europeu de preços de referência? E, porque não, desenvolver um modelo Europeu de preços de medicamentos que esteja baseado no poder paritário de compra da população de cada País?

Este episódio das vacinas orçamentais causa-nos estranheza. É estranho pela medida e, acima de tudo, pelo total desprezo por outras prioridades para a legislação de saúde. Não sei, não sei mesmo, mas se em vez de tantos advogados houvesse mais profissionais de saúde e, já agora, mais doentes na Assembleia da República, talvez pudesse ser diferente. Por mim, lá vou fazendo a minha parte, sozinho se for preciso, porque sou eu quem vê os olhos daqueles que em mim confiam. Quando não me deixam fazer mais nada, resta-me lutar por eles.

Ex-ministro da Saúde