Em Roterdão, nos Países Baixos, há uma multidão de gente preparada para disparar ovos podres sobre o novo iate de Jeff Bezos, o dono da Amazon. Os activistas do ovo dizem que o fazem para defender uma ponte histórica que terá de ser provisoriamente desmantelada para o barco passar, mas a verdadeira explicação é outra e não tem nada que ver com o passado. Tem tudo que ver com um presente onde se detesta os muitos ricos, apesar de se beneficiar da sua fortuna, e se faz política explorando o ressentimento.

Para sair do estaleiro naval onde está a ser construído, o navio, de 127 metros de comprimento e três enormes mastros, precisa que a ponte levadiça de Roterdão, que só consegue erguer-se até 47 metros de altura, seja parcial e momentaneamente desmontada. Claro que o estaleiro, e, portanto, o cliente, paga o custo. Mas isso não interessa.

Como é evidente, uma grande parte dos 500 milhões de dólares (mais de 800 mil ordenados mínimos nacionais) que Jeff Bezos vai pagar pelo navio vão acabar direitinhos nos bolsos de muitos destes activistas e das suas famílias, que mesmo que não trabalhem directamente naquele estaleiro, certamente beneficiam muito das compras à indústria naval local, que há-de ter uma cadeia de valor na região. E esta encomenda há-de certamente fazer alguma diferença. Positiva.

Mas apesar do que dizem, a ponte é apenas o pretexto. Se fosse por causa da ponte, o que faria sentido era estar zangado com o estaleiro naval que, quando aceitou a encomenda, certamente sabia o que ia ter de ser feito. Bezos, muito provavelmente, nem desconfia que há pontes em Roterdão, e menos ainda que são mais baixinhas do que os três mastros do seu iate.

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Se não é a ponte, que já foi retirada para reparações noutra ocasião, nem é do seu interesse impedir a construção do navio naquele estaleiro, porque é que se manifestam? Porque Jeff Bezos é extraordinariamente rico. Mais precisamente, é o segundo homem mais rico do mundo, suposto valer mais de 180 mil milhões de dólares (o quer que isso seja). E tem a reputação de ser um capitalista selvagem.

O que motiva os cidadãos prontos a apedrejar o veleiro não é o monumento, é a monumental fortuna de Bezos. Como é que alguém pode ser tão rico que possa pagar o barco, que vai custar cerca de 500 milhões de dólares, e impor o desmantelamento temporário de parte da ponte, pelo capricho de ter um dos maiores iates do mundo? Ainda por cima sendo alguém que se diz que trata mal os milhares de empregados (nos milhares de empregos que a sua empresa cria), e paga menos impostos do que se acha que devia. Não passará. Ou passará, mas ficará manchado.

Sendo legítimo odiar os ricos em geral, e Jeff Bezos em particular, ainda assim a atitude dos populares de Roterdão não parece muito inteligente – a construção do navio vai certamente beneficiar a comunidade, e no final a ponte regressa inteira ao local original. Nem parece muito neerlandesa. Se há lugar na Europa continental que dá valor ao sucesso e à criação de riqueza são, precisamente, os Países Baixos. E, finalmente, também não é muito coerente. Se Jeff Bezos paga menos impostos do que acham que deveria, é provável que isso também se deva à política fiscal do governo neerlandês.

É fácil dizer que os holandeses, pelo menos alguns, afinal não passam de uns invejosos, mas isso não explica muito. A estagnação, e mesmo retrocesso, económico dos últimos anos; a falta de confiança nas virtudes do modelo capitalista; a sensação de que a distância entre os mais ricos e os mais pobres aumenta, mesmo que os mais pobres sejam cada vez mais ricos; e a convicção de que o sistema privilegia os ricos e explora os pobres explica muito mais. Isso e haver cada vez menos quem defenda um sistema que permitiu que, de um modo geral, se viva muito melhor do que alguma vez se viveu.

Assim como à direita há quem explore a frustração dos que se sentem ameaçados pelas imigrações e a deslocalização da produção provocada pela globalização, à esquerda há quem se alimente do ressentimento dos que não acreditam que vão ter oportunidades.

Alguém interessado em demover racionalmente os populares de Roterdão podia explicar-lhes que não é por haver ricos que há pobres; que apesar das grandes desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres, é preferível ser pobre nos países mais ricos do mundo, que a construção, ali, daquele navio os vai beneficiar, e que se o navio não for construído ali não vão ficar nem um pouco melhores; ou que o fim da competitividade fiscal vai beneficiar os países maiores e mais ricos e não os outros. Tudo isso será verdade, mas é muito mais produtivo explorar politicamente as frustrações. É isso que os radicais fazem sempre. De um lado e do outro. Nisso sendo muito mais parecidos do que pensam.