Não era fácil discutir com o Samuel. Apesar da confiança que tinha em apresentar bons argumentos, o Samuel discutia com todos os nervos que havia nele. Rosto, voz, olhos. Lembro alguns dos debates mais acesos nos dias em que integrávamos a equipa de programas de televisão da Aliança Evangélica Portuguesa e, caramba!, eram acesos. Eu, que tinha vinte e pouco anos, treinei-me a ouvir discussões entre homens graúdos em episódios daqueles. Uma vez chateou-se mesmo e saiu porta fora.

Do que me recordo, nunca nos zangámos. Trabalhámos juntos durante mais de uma década e tivemos as nossas diferenças de estilo e de conteúdo. Se nos tivéssemos zangado também não haveria problema porque amigos zangam-se e desfazem as zangas. Mas acho mesmo que nunca nos aconteceu. O facto de o Samuel ser mais velho do que eu também me inspirava a reverência natural que há por alguém que tem uma autoridade superior. Não me passaria pela cabeça julgar que estava ao nível dele.

Apesar de ter sido a televisão que nos juntou, tínhamos os dois uma paixão ainda maior pela escrita. O Samuel lia e lia com uma curiosidade santa e nada diletante, como é mais a minha tendência. Interessava-lhe sobretudo a postura apologética (como dizemos entre evangélicos, pensando na promoção e defesa da fé) e a mim nem tanto. Lembro-me que sempre que eu tinha uma nova oportunidade de escrever, por exemplo quando comecei a colaborar com a revista Atlântico ou com a revista Ler, ele fazia parte da pequena lista de pessoas que fazia questão de avisar. Essa minha alegria também era dele.

Mas o Samuel do púlpito não era bem o Samuel mais argumentativamente arrumado dos textos. Na última vez que o ouvi partilhar a palavra (pela internet, quando ele falou na sua Igreja, a Assembleia de Deus de Benfica em Outubro passado), não fui capaz de o fazer direito. Tive de parar para rir com ele, para chorar com ele, para me desmanchar com ele. O Samuel, bom filho da sua tradição pentecostal, fazia questão de levar para o sermão todo o desarranjo que nele havia. E por muito que valorize uma boa preparação teológica e uma pregação reverente e razoável, não acredito em quem fala de Jesus de um modo adequado.

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Só fala de Jesus de um modo adequado quem não morreu ao encontrá-lo para nele ter uma vida nova. E, graças a Deus, havia no Samuel toda a mais abençoada inadequação quando falava no seu Senhor. O Samuel com Jesus fazia ronrom e com Jesus mordia. Quando o Samuel pregava, não disfarçava que precisava de colo. Ele não era alguém que adequadamente apresentava Jesus aos outros porque Jesus é que era o dono dele. Talvez haja demasiadas pessoas que apresentam Jesus aos outros, dominando-o, colocando-o ao serviço dos seus interesses. São demasiado poucas, parece-me, as que são dominadas por Jesus, estando ao serviço dele. O Samuel era uma delas.

Desde que deixei de trabalhar nos programas de televisão com o Samuel, encontrei-o pouco. Ele viveu esses anos todos doente e eu gostava de ter sido um melhor companheiro dele. Quando a nova direcção da Aliança Evangélica tomou posse e muito justamente o mencionou (porque a comunidade evangélica deve muito ao Samuel e à sua esposa Isabel), senti-me culpado. Enviei-lhe uma mensagem pela internet em Dezembro passado perguntando-lhe como estava e dizendo-lhe que orava por ele. O Samuel respondeu-me com uma humildade e uma amizade que me embaraçaram no meu desnaturamento. Fiquei de lhe voltar a responder mas o tempo foi passando.

Deus chamou o Samuel esta semana. Gostava tanto de ter voltado a encontrá-lo mas já não deu—tantas coisas para fazermos e não fazemos as mais importantes… Seja. Há mais uma razão para não me importar morrer. Quando um dia estiver com o Nosso Senhor, estarei também na presença de todos aqueles que, agora já sem a necessidade de morder, ronronam no seu colo. Tenho a certeza que é aí que reencontrarei o meu amigo Samuel Pinheiro. Até lá!