Peço desculpa por estar a abusar do título de uma Revista que marcou o panorama literário nacional. A verdade é que se adequa e tive de o plagiar. O “tempo”, de que agora vou escrever, não será verbal, tal como o “modo”, não se refere à gramática.

Começo pelo tempo.

A Ordem dos Médicos apresentou um trabalho em que propõe a revisão dos tempos mínimos de consulta para que desse tempo resulte um intervalo entre marcações e, consequentemente, se defina o número máximo de doentes consultados em cada período de consulta. O trabalho é meritório e merece ser atentamente considerado, como tudo o que venha das Ordens profissionais, pelo Ministério da Saúde.

Não se pode dizer, a propósito deste tema tão importante, que ele “não está em cima da mesa”. Razão, toda a razão, tem o Dr. Carlos Cortes, Presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos. Todos os temas devem estar em cima da mesa da ministra da saúde, ainda para mais quando eles se referem à melhoria da qualidade assistencial dos serviços de que a senhora é responsável político. Tivesse havido mais experiência e tino de que quem lhe deve assessorar a comunicação, antecipando que o tema seria levantado por um qualquer jornalista, e a resposta deveria ter sido:

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– “É claro que é um tema que nos preocupa, tal como tudo o que se refere com a qualidade assistencial, vou ler com a máxima atenção e estou, naturalmente, disposta a conversar com todos os profissionais para encontrar soluções que estejam fundamentadas na melhor evidência disponível”.

Simples, não? Qualquer variação em torno disto seria melhor do que descartar o documento. A propósito da possibilidade de diminuir as listas de utentes nos cuidados primários, consequência antecipável, poderia ter dito:

– “Não nos parece que seja, para já, possível ou desejável, mas estamos sempre dispostos a encontrar as soluções que demonstrem ser as mais indicadas para servir melhor os utentes do SNS”.

Caramba, Dr. Costa, V.Exa é um campeão de lero-lero e não conseguiu encontrar uma ministra que fosse, pelo menos, igual de lábia ao Prof. Adalberto Campos Fernandes. Confesse lá, Senhor PM, está com saudades do ministro que não deveria ter despedido.

Voltando à proposta da Ordem, a versão que se pode consultar peca por não estar associada à divulgação dos pareceres dos Colégios de cada Especialidade, não ter bibliografia, não apresentar comparações com outros Países. É um trabalho importante que merece ser futuramente apresentado com mais informação acessória, com uma análise da realidade atual em Portugal e com uma base científica que suporte as recomendações baseadas em evidência e não no “acho que”.

Por também poder “achar”, parece-me que uma consulta poderá ter a duração média de 20 minutos para todas as especialidades, incluindo a de Medicina Geral e Familiar, sendo que as primeiras consultas deverão durar em torno dos 45 minutos, talvez uma hora para MGF e Psiquiatria. “Acho”, porque não tenho informação que me permita sustentar esta afirmação para lá da minha experiência adquirida ao fim de ser Médico há 35 anos, especialista há 27. Pois, eu sou do tempo em que se faziam uns anos de policlínico, no meu caso 3, mais os 5 de especialidade, Hematologia Clínica no meu caso. Apesar disso, assunto que ficará para uma outra oportunidade, continuo a defender o fim do “ano comum”, desde que este fosse substituído por uma formação universitária mais adequada ao modelo de médico de que Portugal precisa no século XXI e os internatos fossem revistos para incluírem um primeiro ciclo de formação geral habilitante (p.e. medicina interna, cirurgia geral, pediatria, psiquiatria) e um ciclo posterior de especialização propriamente dita. Este modelo existe em outros sistemas de saúde. A sua implementação passaria também por haver uma intervenção do ministério da saúde na formação pré-graduada. Já escrevi isto muitas vezes, mas nunca deixo escapar uma oportunidade para aflorar o tema. Reconheço que é controverso e tem virtudes e defeitos. Pessoalmente, considero que as primeiras são mais do que os segundos.

Os tempos de consulta são indicações médias. Em 5 horas, a duração habitual de um período de consulta de Hematologia Clínica ou Oncologia Médica no IPO de Lisboa, é possível observar 15 a 18 doentes, incluindo 1 a 2 primeiras consultas, desde que haja a arte e o bom-senso de saber distribuir as patologias e quadros clínicos de forma a impedir a concentração de doentes complicados no mesmo dia e uma máquina suficientemente oleada que permita, como é o caso da instituição em que trabalho, ver os doentes com análises efetuadas no mesmo dia. Em última análise, sempre que é preciso, prolonga-se um pouco a consulta e até há a possibilidade de começar mais cedo. Os tempos são importantes, mas gerem-se com bom-senso. Este documento que a Ordem agora propõe para discussão é ainda mais importante porque, não raras vezes, há falta de senso comum em quem gere o SNS e porque poderá servir de modelo para planificação de recursos.

O tempo não é tudo. Uma consulta médica não vive sozinha. Uma consulta, para funcionar, precisa de enfermagem, precisa de consultas de enfermagem, de pessoal auxiliar, de excelente secretariado e de espaços.

O tempo depende do modo.

É certo que na saúde poderá aplicar-se a lei de Baumol. Li esta afirmação, parcialmente verdadeira, num livro que até é pior do que eu imaginava quando o comprei (“A Quarta Revolução” de Micklethwait e Wooldridge, uma coleção de lugares comuns que passam a ser doutrina porque as banalidades escritas por especialistas são dizeres de sapiência). Dizem os autores que aumentar eficiência, na saúde, faz-se à custa de mais funcionários, mais saber, maior rigor técnico (maior qualidade), melhoria de estruturas e, só marginalmente melhores equipamentos (mais rápidos, precisos, mais sensíveis e específicos). Globalmente, têm razão. O que dizem é que, na saúde, saber e competência são o mais importante e que é possível aumentar a produtividade, mantendo todas as outras variáveis sem alteração, se os profissionais trabalharem melhor. O exemplo da orquestra é excelente. Podemos aumentar o número de músicos, mas se eles não souberem tocar nem conseguirem coordenar-se não sairá música. O quarteto será sempre quarteto e cacafonia será sempre cacafonia, exceto se for de Boulez. Nada contra. Ouço coisas ainda menos convencionais e gosto.

No entanto, quantas vezes, mesmo havendo médicos e enfermeiros suficientes, todos supostamente bons, não é possível oferecer mais consultas porque não há espaço, não há gabinetes médicos, não há equipamento para poder realizar consultas médicas? A verdade é que os recursos humanos são a base da relação terapêutica (incluindo a preventiva), mas sem tempo, espaço e equipamento, ela não pode ser feita com o nível de qualidade que os utentes do SNS devem exigir, diria mesmo, reclamar.

Existe alguma literatura, pouca, sobre a importância dos tempos de consulta. Pode ler-se um texto mais geral da Forbes ou procurar literatura mais especializada como é o caso de  Sinsky et al. 2016, Ann Intern Med. doi:10.7326/M16-0961 ou o comentário de Kathy Oxtoby em BMJ 2010; 340  doi. Em termos internacionais, a maioria dos doentes está sujeita a tempos de consulta inadequados pela sua pequenez, como se pode ler em Irving et al. de que a portuguesa Ana Luísa Neves, da Universidade do Porto, é uma das autoras.

A verdade é que não é possível encontrar muita literatura que ligue resultados de saúde com um tempo ideal de consulta médica. O que não existe é literatura que demonstre diferenças significativas entre 15 minutos ou 20, 30. E percebe-se porquê. Mais importante do que tempo, fixados limites de razoabilidade, é o que se faz com ele, o modo.

Há inúmeras publicações e estudos que mostram a importância do uso do tempo, do modo, nas interações entre médicos e doentes/utentes. Ter tempo para ouvir e falar, observar, examinar, tentar compreender, desenvolver empatia, escutar, recomendar, prescrever, explicar, cativar, criar confiança, garantir que o doente volta, não é tarefa simples que se faça com pressa, a olhar para o relógio. Não é fácil ser médico. Não se aprende só em livros, embora se tenha que ler muito, sempre, constantemente. Também se aprende a ser médico ao ouvir os doentes e os seus familiares. Tempo é a base de uma relação que se pretende duradoira.

Quando for resolvida a questão da cobertura, em termos de número de portugueses inscritos em listas de médicos de família, interessa dar ainda maior enfoque à qualidade dos cuidados. E uma parte importante dessa qualidade é a satisfação dos utentes, por um lado, e a eficiência dos cuidados, por outro. Ora, eficiência e satisfação, dependem da efetividade do ato médico, da capacidade de resolver a necessidade de saúde com meios adequados, proporcionados e de custo acessível. Daí que seja quase impossível determinar, para lá do bom senso, se 15 minutos serão sempre insuficientes ou se meia-hora não será, por vezes, excessivo. Aí, não há como mudar o paradigma, só o médico, face ao seu doente considerado individualmente, pode decidir. Precisa de margem para poder decidir e um espartilho de 15 minutos é pouco espaço de manobra.

E para poder tomar este tipo de decisões é preciso que tenha ferramentas na esfera da comunicação, do contato e, obviamente, imenso saber sobre medicina clínica no seu todo, o todo que é muito mais do que interpretar exames e passar receitas. Os nossos médicos precisam de tempo para atender, mas também precisam de formação e de tempo para quem a dá e recebe.

O tempo virá em que o modo voltará a ser o mais importante. Até para o ministério da saúde

Será que o ajuste dos tempos de consulta determinará a redução dos números de utentes atendidos por cada médico.? Talvez, embora não seja tão linear como a equação doentes/hora fará crer. Reduzir listas de utentes? Não será, para já, possível. Rever os critérios de cálculo das unidades ponderadas, o índice que compara doentes e a carga de trabalho a eles associada, é imperioso.

Maximizar a utilidade do tempo de consultas é uma obrigação. Essa maximização conseguir-se-á através do aperfeiçoamento da proficiência técnica dos médicos e com melhores apoios de consulta, humanos e técnicos. Por exemplo, informatização, ao contrário do que muitos suporiam, melhora muitos aspetos da consulta médica – atente-se que eu sou um indefetível defensor da prescrição eletrónica e do processo clínico único e informatizado para todo o SNS, o que ainda não existe -, mas a informática não contribui para a diminuição do tempo de consulta. Na verdade, o recurso a uma interface computacional diminuiu tempo de contato ocular, pode atrasar a inscrição de dados no diário clínico para quem não é proficiente em datilografia, e é desastroso quando os equipamentos são “velhos”, o software não é adequado, as ligações falham, enfim, o infindável capítulo da luta do profissional de saúde contra as máquinas que o deveriam ajudar. Aqui, há tanta investigação e literatura que seria impossível encher a crónica de citações.

O tempo é, acima de tudo, o modo como é usado. Tempo inútil é tempo perdido, não recuperável. A Ordem dos Médicos faz bem quando propõe orientações sobre os tempos mínimos de atendimento em consulta. Falta suportá-los com mais evidência. A Ordem fará ainda melhor se continuar a pugnar por mais e melhor formação médica. Precisamos de mais e melhores médicos. Mais cultos, mais humanos e mais sabedores. Mais conhecedores da natureza humana e de tudo o que esta tem de fascinante, não só da sua biologia que, sendo a base da vida, não explica toda a vida de cada um de nós. E o nosso ministério, quando o bom senso voltar a ser o esteio da política, deverá olhar para toda a documentação que lhe chegar às mãos, não descartará oportunidades de aprender com quem possa saber mais e assumirá que gerir a saúde não é, longe disso, apenas gerir despesas e fluxos de caixa.

Médico, ex-ministro da Saúde