Os ministros, naturalmente, são como qualquer outra pessoa: podem ser altos ou baixos; podem ser simpáticos ou azedos; podem ser faladores ou tímidos. E, claro, podem ser competentes ou incompetentes. Depois, dentro do larguíssimo espectro da incompetência, temos variações de gravidade: alguns são incompetentes episódicos, outros são incompetentes inofensivos e outros ainda, os piores dos piores, são incompetentes flagrantes.

Um incompetente flagrante é alguém que, mesmo tendo sido avisado repetidamente de que estava prestes a cometer um erro de proporções catastróficas, insistiu num curso de ação que teve consequências tão graves que se prolongaram para além do seu mandato.

Esta semana, para mal da pátria, fomos confrontados com a incompetência flagrante de duas ex-ministras. A primeira foi Francisca Van Dunem. A 29 de janeiro de 2019, a então ministra da Justiça recebeu no seu gabinete um ofício onde a Provedora de Justiça a alertava para a urgência de alterar a lei dos metadados. Com infinita paciência, Maria Lúcia Amaral explicou que a legislação ia contra as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia e, muito provavelmente, contra a Constituição portuguesa.

A Provedora de Justiça tinha absoluta razão, como se provou mais tarde com uma decisão do nosso Tribunal Constitucional e como se provou esta semana com a desarticulação da sentença do processo de Tancos. Era tudo muito evidente, mas na altura Francisca Van Dunem recusou-se a reconhecer o óbvio. Em resposta ao ofício da Provedora, a ministra defendeu, com a sobranceria autosuficiente que carateriza alguns dos nossos governantes, que a legislação portuguesa respeitava um conjunto de “garantias no acesso aos dados de comunicações” que, assegurando, “apesar de tudo, medidas proporcionais suficientes”, faria com que a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia não afetasse “as investigações nacionais” — ou seja, era uma lei produzida por génios do Direito, daqueles que só se encontram em Coimbra ou no Campo Grande. No final da carta, mais por educação do que por convicção, Francisca Van Dunem prometia “acompanhar com preocupação” as questões que inquietavam Maria Lúcia Amaral. Se teve preocupação, não teve urgência; e se acompanhou, não agiu, uma vez que tudo ficou na mesma.

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A segunda incompetência flagrante de uma ex-ministra com que fomos confrontados esta semana é de Marta Temido. Em maio de 2021, a ministra da Saúde decidiu acabar com a PPP no Hospital de Loures, ignorando números e relatórios que demonstravam que a gestão privada era mais barata e mais eficaz do que a gestão pública. Houve alertas, houve apelos e houve avisos, mas Marta Temido não quis saber nem quis ouvir.

No dia em que a PPP acabou, a ministra da Saúde mandou um dos seus secretários de Estado ao Hospital de Loures para dizer duas coisas que se revelaram tragicamente absurdas. Uma foi esta: “O hospital continua a ser o mesmo, a ideia é manter ou melhorar a qualidade”. A outra foi esta: “Os profissionais estarão cá no dia seguinte à transição”. Esta semana, depois de ter sido necessário, por falta de médicos, fechar as urgências pediátricas durante a madrugada e ao fim de semana, os chefes de equipa do Serviço de Urgência Geral demitiram-se e escreveram que o hospital “vive os piores momentos da sua história” (portanto, não é o mesmo nem está melhor) e que os últimos meses “têm sido marcados pela saída recorrente de especialistas”, num “desespero” provocado “por problemas de recursos humanos” (portanto, os profissionais não ficaram lá nos dias seguintes à transição).

Era evidente que a lei dos metadados ia provocar um cataclismo nos casos em julgamento. E era evidente que o Hospital de Loures ia entrar num rápido processo de decadência ao passar da gestão privada para a pública. Mas, mesmo contra todas as evidências, Francisca Van Dunem e Marta Temido persistiram. Agora, uma está tranquilamente reformada e a outra está afincadamente a preparar uma candidatura à Câmara Municipal de Lisboa. E o país, que não se pode reformar nem candidatar a nada, está a sofrer as consequências de duas decisões que teriam sido evitadas por qualquer pessoa que não fosse portadora da supracitada incompetência flagrante.

Perante isto, o que fazer? Em tempos, o Faroeste recorreu ao alcatrão e penas — o que não recomendo. Recentemente, a Islândia recorreu a processos judiciais — o que não defendo. Mas talvez fosse interessante que existisse algum movimento de sobressalto cívico em relação a quem, como Francisca Van Dunem, não fez o que devia e em relação a quem, como Marta Temido, fez o que não devia.