Passadas décadas após a descolonização, torna-se difícil evitar o assunto da violência quando o tema é África. O lado manifesto (ou visível) do fenómeno não constitui tabu conforme tem demonstrado a agenda mediática, cujos destaques nos últimos tempos têm incidido em países como a Nigéria, a República Centro Africana, o Sudão do Sul, mas poderiam ser Moçambique ou a Guiné-Bissau, entre outros. A questão é que o que é decisivo no fenómeno reside no lado latente (ou invisível), sendo neste que confluem os interditos que explicam a natureza endémica da violência social em África.

Se a situação resulta da frágil capacidade das sociedades em elaborarem pensamentos críticos sobre si mesmas, no caso de África, dada a forte exposição do continente ao exterior, parte importante das responsabilidades pela natureza endémica da violência reside em segmentos da intelectualidade europeia, norte-americana e, mais recentemente, sul-americana, que há décadas monopolizam a legitimidade dos discursos sobre os africanos.

Em África, as sociedades ancestrais pré-coloniais tinham violência; as sociedades coloniais tiveram violência; as sociedades pós-coloniais continuam a ter violência. A razão é incontornável: a violência é um (ou mesmo o) elemento constitutivo da ideia de sociedade onde quer que ela exista, independentemente da variabilidade das suas características no tempo e no espaço. O que importa é considerar em que medida os sistemas que tutelam as sociedades conseguem domesticar os instintos primários da condição humana ou, em sentido contrário, em que medida tais instintos primários ganham ascendência ou irrompem em espasmos de descontrolo na vida quotidiana.

Acontece que a única violência profundamente exorcizada pelas sociedades africanas foi, e continua a ser, a violência colonial europeia. E bem. O caso do Ruanda constitui uma exceção que confirma a regra do silenciamento da natureza latente da violência social de matriz endógena. Isto significa que a violência tradicional pré-colonial e a violência pós-colonial são hoje muitíssimo mais perversas para o funcionamento das sociedades africanas, quando comparadas com a violência exógena resultante da dominação europeia. Ao contrário desta, aquelas têm permanecido num limbo ou estádio letárgico.

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Apesar do lugar-comum apontar em sentido contrário, a situação não resulta da indiferença dos ocidentais em relação a África, antes do sufocante ativismo liderado por académicos, intelectuais ou “agentes” da cultura ocidentais (e não só) que, nestas décadas pós-coloniais, mantiveram, reforçaram e sofisticaram os ideais progressistas anticoloniais.

Os últimos, ao esvaziarem de instintos primários a representação do africano para compensarem complexos de culpa históricos do homem branco, na prática impuseram um tipo ideal de africano, hoje hegemónico, que o transformaram num ser iminentemente bom no seu íntimo, tese em geral extensível à condição de ex-colonizado da contemporaneidade. Dado que as evidências impedem a negação do óbvio, as causas dos males têm sido interpretadas como impostas de fora a uma condição humana africana intrinsecamente bondosa.

Disto, na substância, mais não tem resultado do que o revigorar da velha representação de sempre, embora reciclada numa conotação inversa, que fez transitar o africano do infra-humano (colonial) para o supra-humano (pós-colonial).

Um dos produtos desta nova ordem intelectual e cultural do mundo tem sido o estado de negação das raízes endógenas da violência social em África, posto que tal apenas é passível de ser assumido quando existe uma representação da condição humana na plenitude das suas ambivalências. Nestas circunstâncias, quanto mais a violência própria não é assumida, quanto mais recalcada ela for, mais tende a irromper cíclica ou permanentemente na vida das sociedades através das mais variadas formas.

Porque exorcizada em toda a sua extensão, torna-se bastante improvável o retorno a África de um tipo de violência cuja génese seja equiparável à colonial, isto é, imposta de fora para dentro do continente. Logo, é por demais evidente que o essencial do que está em causa tem raízes internas nas sociedades africanas, sejam elas profundas ou superficiais.

Acrescento que o período de ocupação colonial efetiva correspondeu ao momento em que a violência social nos territórios africanos foi, em geral, melhor regulada, mais lógica, mais racional, mais previsível para as pessoas comuns, mesmo em contextos de guerra, como foi o caso das antigas colónias portuguesas. No entanto, deve ficar claro que a existência de sociedades estáveis e previsíveis na África colonial resultou da violência imposta pelo poder europeu. Se aos olhos de hoje os meios para atingir tais fins são inaceitáveis no plano moral e, só por si, justificadores da justiça e a dignidade das independências africanas, constituindo o dogma da independência dos povos um princípio universal inquestionável, o facto é que os poderes coloniais foram comparativamente muito mais eficazes na estabilização e regulação da vida social.

Chego ao argumento-chave deste texto: o principal sentido do muito que a intelectualidade ocidental dominante tem produzido sobre África no período pós-colonial, em particular por via da historiografia, ciências sociais ou literatura, transporta sintomas do mais perverso que se possa suspeitar. De tanto sobrevalorizarem a sua violência durante a dominação colonial (fenómeno histórico e social longe de se esgotar nessa dimensão), tal atitude transformou-se na razão maior que impede a captação e a análise, com olhos de ver, das outras violências, a pré-colonial e a pós-colonial. Tal atitude tem condicionando fortemente a própria intelectualidade africana.

Os poderes vigentes na África independente têm, com isso, capitalizado o “lugar da inocência” que tem gerado efeitos inversos às (boas) intenções. E não vale a pena alimentar ilusões sobre as oposições políticas africanas onde quer que elas existam, posto que estas em nada mudariam o problema de fundo anterior a qualquer exercício efetivo do poder: a necessidade de exorcizar a violência endógena como pré-condição para a viabilidade de sociedades pacíficas, livres e equilibradas.

De resto, as maiores responsabilidades pela violência endémica em África, um problema acima de tudo do domínio do conhecimento ou da razão, não residem na classe política. Como em qualquer lugar, incluindo na Europa, a classe política africana existe para ser seletiva, parcelar, maniqueísta na sua relação com o real. É por isso e para isso que a política existe. A questão chave reside noutra dimensão. Na grave falta de autonomia analítica e crítica de académicos e intelectuais nas suas relações com os jogos de poder, o que os tem levado vezes demais a verem e a interpretarem as sociedades pelo mesmo ângulo dos que se movem na arena política, ampliando o que esta tenciona que seja visível e recalcando o que para esta é útil que permaneça invisível.

A isto acrescente-se o papel dos artistas (músicos, atores, pintores, entre outros) que mais não têm feito do que ampliar desmesuradamente a névoa de equívocos identitários que alimenta a dimensão latente da violência social.

A fatura deste vasto conjunto de carreiras profissionais, algumas delas de grande sucesso no ocidente e no mundo, tem sido paga a peso de ouro no dia-a-dia das populações africanas, seja por via de guerras civis ou ameaças bélicas endémicas, seja por via da violência quotidiana gerada por elevados índices de criminalidade urbana ou linchamentos em tempos de paz. E o mais que atinge a dignidade da condição humana.

Apesar de tudo, a inimputabilidade intelectual deve ser tolerada na mesma medida em que a liberdade da razão crítica não deve viver na sombra. É para isso que serve(m) o(s) Observador(es).