Talvez tenha sido o primeiro dia de verão mais invulgar do Samouco. E não foi pela chuva que caiu esta quarta-feira de manhã naquela vila de Alcochete e se misturou com o calor. O aparato policial que se montou na longa avenida que dá as boas vindas ao Samouco denunciava o que ali se passava, com inspetores da Polícia Marítima, do SEF, agentes da PSP – várias polícias à porta de um enorme pavilhão totalmente vedado. Na entrada, praticamente ao lado dos agentes, estavam também dois homens que acabavam com qualquer dúvida. Mário e António (nomes fictícios) foram surpreendidos, logo pela manhã, pelas buscas. Afinal, era a este armazém que os dois apanhadores iam vender os quilos de amêijoa japonesa que tinham apanhado ilegalmente durante a madrugada. “Quando soubemos fomos escondê-la [a amêijoa] no mar”, disse Mário, que nunca quis ser identificado, nem dizer a idade. “Nome? Então a gente foge da polícia no mar”, atirou.
A experiência destes apanhadores foi suficiente para conseguir perceber o que se passava do outro lado do muro, onde estavam 80 imigrantes, em silêncio, em pé, à espera para serem identificados pelas autoridades, já depois de terem sido detidos quatro portugueses – os alegados cabecilhas da rede criminosa transfronteiriça que se dedica ao tráfico de amêijoa japonesa. Todos aqueles imigrantes já se tinham curvado no rio Tejo para apanhar amêijoa. E a sua morada era precisamente aquele pavilhão. Mário e António cruzavam-se com aqueles homens e mulheres no rio, apesar de existirem diferenças: estes dois portugueses tinham um barco e os imigrantes vestiam apenas um fato de surf para entrar no Tejo.
Barcos e utensílios à parte, os dias de uns e de outros são semelhantes, precisamente porque dependem das marés. “Os horários dependem da água”, explica depois António, enquanto tenta espreitar, longe dos olhares dos agentes que garantem que ninguém entra, por pequenas frestas da vedação do armazém que um dia foi um restaurante para casamentos e batizados. “Mas há duas baixas-mar por dia. Se uma for às cinco da manhã, a outra é mais ou menos às seis da tarde. E costumam ser 17 dias por mês, que são os dias em que a maré baixa mesmo e eles conseguem andar lá. E cada maré dura quatro horas. Eles vão, fazem a primeira, depois voltam, metem os fatos a secar e estão prontos para a próxima”, continua.
Quantas vidas cabem numa história? Nesta, contam-se 243. E há tendas, miséria e baratas
As 80 pessoas que estiveram praticamente o dia inteiro naquela que fora até agora a sua casa — só saíram do armazém por volta das cinco da tarde, transportadas para os pavilhões dos bombeiros de Samouco e de Alcochete –, não eram as únicas em situação de perigo. No total, as autoridades encontraram, no âmbito desta operação, 243 migrantes explorados por uma rede de tráfico de amêijoa. Todos eles viviam em condições indignas, dentro de pavilhões, no Samouco, em Alcochete e no Montijo.
Mas o cenário encontrado e as primeiras notícias de que dentro do pavilhão do Samouco estavam pessoas que seriam exploradas, que seriam obrigadas a trabalhar para alimentar uma rede de tráfico e que viviam em condições indignas não espanta quem por ali passa todos os dias. “Toda a gente sabe, é assim há muitos anos”, conta uma das clientes de um café cuja vista dá para o local onde decorria um dos 30 mandados de detenção desta quarta-feira.
E também não surpreendia os dois apanhadores portugueses que continuavam à porta do pavilhão, à espera de novidades. Um deles, Mário, já tinha estado onde dormiam os 80 imigrantes que chegaram a Portugal vindos da Malásia, da Tailândia e do Nepal:
– As condições são más?
– Mais ou menos.
– Há pior?
– Não, nunca vi pior.
E os agentes que entraram dentro daquele espaço, apurou o Observador junto de fonte ligada ao processo, também nunca viram condições piores do aquelas: “Tendas em espaços que, supostamente, seriam quartos, botijas de gás e fogões junto a depósitos de gasolina, muito lixo, baratas e camas coladas umas às outras”. E cada uma destas pessoas, por um pequeno pedaço de chão, pagava cerca de 300 euros por mês.
Nos rostos, “havia tristeza”, acrescenta a mesma fonte. Mas também um sentimento de agradecimento à polícia: a palavra que os agentes mais ouviram esta quarta-feira, enquanto estiveram lá dentro, foi “‘obrigado’ em tailandês”. Nenhum dos 80 imigrantes falava português e, por isso, foi necessário chamar tradutores para que pudessem falar com a polícia. E no local estiveram também dois membros do Alto Comissariado para as Migrações (ACM): “Foi feita uma avaliação, nenhum deles é perigoso, são apenas pessoas que são exploradas”.
Uma das dúvidas que existe neste momento, e que será investigada, é se estes imigrantes vieram todos da zona de Odemira, onde vivem milhares de imigrantes e que trabalham nas estufas, ou se vieram de outros locais. Certo, acredita a investigação, é que serão explorados por redes que se aproveitam da situação de fragilidade e ganham com o seu trabalho e com as suas necessidades.
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Negócio da amêijoa é equivalente ao da droga
Neste momento, segundo explicou ao Observador fonte ligada a estes processos, o tráfico da amêijoa permite gerar tanto como o tráfico de droga. E estas duas redes têm muitas semelhanças: são compostas por um líder, têm vários sublíderes, uma rede de compradores e existe uma camada que é explorada. O tráfico de amêijoa é, neste momento, um crime organizado.
A Polícia Marítima começou a investigar a rede que foi esta quarta-feira desmantelada há cerca de dois anos e meio e percebeu, ao longo do tempo, que o tráfico ia além fronteiras. Dos armazéns, a amêijoa era levada para vários países da Europa, como Espanha, França, Holanda e Itália. Aliás, além dos 161 agentes da Polícia Marítima, do SEF e da PSP, estiveram também elementos do SIS e da polícia espanhola.
À porta do pavilhão onde foram encontrados os 80 imigrantes estava estacionado um camião da Polícia Marítima. Lá dentro, tinham sido colocados todos os quilos de amêijoa apreendidos e que tinham sido retirados do pavilhão — cada quilo que sai do mar e é vendido aos armazéns por apanhadores como Mário e António, por exemplo, vale quase quatro euros. Entre aqueles quilos, todos apanhados ilegalmente, alguns teriam sido apanhados pelos imigrantes que entrariam horas mais tarde num autocarro, carregados com malas, sacos com cobertores e até cartazes com fotografias.
“Ai, tu já viste o dinheiro que vai ali?”, perguntou António a Mário. Uma certeza estes dois apanhadores tinham: nenhum quilo era deles.