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A partir deste sábado, Portugal passa a ter quatro cardeais que podem participar na eleição do sucessor do Papa Francisco
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A partir deste sábado, Portugal passa a ter quatro cardeais que podem participar na eleição do sucessor do Papa Francisco

A partir deste sábado, Portugal passa a ter quatro cardeais que podem participar na eleição do sucessor do Papa Francisco

Portugal nunca teve tanto peso na cúpula da Igreja Católica. Conheça os seis cardeais portugueses

Com a criação cardinalícia de Américo Aguiar, Portugal passa a ter um número inédito de cardeais: seis, dos quais quatro têm direito de voto no conclave. Quem são os 6 príncipes da Igreja portugueses?

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Quando, na manhã deste sábado, o Papa Francisco colocar o barrete vermelho na cabeça do bispo Américo Aguiar, Portugal passará pela primeira vez na História a ter seis cardeais em simultâneo — quatro dos quais com menos de 80 anos de idade, ou seja, com direito de voto num conclave. Com esta situação inédita, Portugal torna-se num dos países do mundo mais bem representados no Colégio Cardinalício, o grupo dos mais próximos conselheiros do Papa, sobretudo em comparação com o número de fiéis.

Os cardeais, cuja nomeação é da responsabilidade exclusiva e pessoal do Papa, constituem um grupo especial de clérigos da Igreja Católica com uma história que remonta à Idade Média. São eles que têm a prerrogativa de eleger o Papa no conclave e são os principais conselheiros do pontífice. O título de cardeal, usado em tempos para denominar os padres das igrejas da cidade de Roma, ganhou importância ao longo da história: hoje, os cardeais situam-se no topo da hierarquia eclesiástica e já não são exclusivamente romanos. Ainda assim, todos os cardeais recebem uma igreja titular na cidade de Roma — de que tomam posse depois da criação cardinalícia —, mesmo que nem sequer vivam em Itália.

Com o passar dos séculos, o Colégio Cardinalício foi-se universalizando — mas algumas tradições mantiveram-se. O título de cardeal foi, ao longo das últimas décadas, reservado para os bispos chamados a ocupar os cargos mais importantes da Cúria Romana, bem como para os bispos das principais dioceses do mundo — por exemplo, o bispo de Lisboa é, tradicionalmente, elevado a cardeal. Há vários séculos que o novo Papa é sempre eleito de entre os cardeais, que são todos considerados potenciais herdeiros do chefe da Igreja Católica — e que, por isso, recebem o título de “príncipes da Igreja”.

No pontificado do Papa Francisco, contudo, esta lógica tem vindo gradualmente a ser subvertida. O pontífice argentino tem surpreendido frequentemente com as suas nomeações cardinalícias, escolhendo bispos de pequenas dioceses mais periféricas para integrar o colégio e deixando de fora os bispos de algumas dioceses que, tradicionalmente, recebiam essa honra. O Papa Francisco tem transformado crescentemente o Colégio Cardinalício num órgão mais universal, composto por bispos de pequenas dioceses em todos os continentes — verificando-se uma cada vez maior presença de bispos do terreno. Será possivelmente esta a chave de leitura para compreender a nomeação de Américo Aguiar, que era até há pouco tempo bispo auxiliar de Lisboa e que desde a semana passada é bispo de Setúbal.

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Américo Aguiar junta-se, agora, a um grupo de cardeais eleitores portugueses composto pelo patriarca emérito de Lisboa, Manuel Clemente, pelo antigo bispo de Leiria-Fátima, António Marto, e pelo cardeal Tolentino Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação — bem como aos cardeais José Saraiva Martins e Manuel Monteiro de Castro, que já têm mais de 80 anos de idade e não podem, por essa razão, votar num conclave. Neste artigo, fique a conhecer os seis cardeais portugueses.

Américo Aguiar

— Bispo de Setúbal
— 49 anos
— Eleitor

ANA MOREIRA/OBSERVADOR

É possivelmente o mais reconhecido clérigo católico do país. Como principal organizador da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, que decorreu na capital portuguesa em agosto deste ano, o bispo Américo Aguiar tornou-se num rosto conhecido dos portugueses, surgindo quase diariamente nas televisões, rádios e jornais a promover o evento ao lado dos principais decisores políticos do país — ou, então, a dar explicações nos momentos em que a organização da JMJ se viu envolvida em polémicas (como no caso do custo do altar-palco). No final da JMJ, que contou com 1,5 milhões de participantes e que o Papa Francisco considerou “a mais bem preparada” que já viu, foi justamente sobre Américo Aguiar que o chefe da Igreja Católica colocou os louros do sucesso da organização, agradecendo-lhe publicamente pela “dedicação na preparação e condução deste memorável evento eclesial”.

Antes de se tornar no organizador da JMJ, Américo Aguiar tinha sido essencialmente um homem dos bastidores. Com uma vocação nascida nos escuteiros católicos em Leça do Balio e uma passagem pelo ambientalismo e pela vida política ativa, Américo Aguiar foi o braço-direito de vários bispos do Porto — incluindo de Manuel Clemente, que o levaria para Lisboa. No Porto, deixou saudades por ter sido o grande responsável pelo restauro da Torre dos Clérigos. Ao mesmo tempo, foi um dos homens fortes da Igreja em Portugal para a comunicação social, sendo desde 2016 o presidente da Rádio Renascença. Bispo auxiliar de Lisboa desde 2019, foi ele quem coordenou a primeira comissão diocesana de proteção de menores do país — criada na sequência da crise dos abusos.

O mais novo de sete irmãos, Américo Aguiar estava destinado a seguir o percurso de vida do pai e dos dois irmãos mais velhos — e a tornar-se metalúrgico. A vida, contudo, daria outras voltas. 

Em julho, pouco antes do arranque da Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco surpreendeu-o com uma nomeação cardinalícia — intrigante até tendo em conta o pontificado de Bergoglio, já que continuava a ser um simples bispo auxiliar. Na altura, Américo Aguiar atribuiu a nomeação cardinalícia ao seu trabalho na organização da JMJ. Após alguma especulação inicial sobre o futuro do novo cardeal (foram colocadas as hipóteses de Aguiar ser o novo patriarca de Lisboa ou de receber um cargo em Roma com responsabilidades mais amplas sobre as futuras edições da JMJ), o Papa Francisco nomeou-o bispo de Setúbal, uma diocese que estava há perto de dois anos sem bispo.

Américo Aguiar nasceu em 1973 em Leça do Balio, no concelho de Matosinhos, no seio de uma família que, numa entrevista ao Observador, descreveu como “católica de batizados, casamentos e funerais”. O mais novo de sete irmãos, Américo Aguiar estava destinado a seguir o percurso de vida do pai e dos dois irmãos mais velhos — e a tornar-se metalúrgico. A vida, contudo, daria outras voltas. Em criança, na primeira classe, ainda entrou na catequese — mas acabaria por abandoná-la rapidamente. Sentia-se, como disse na mesma entrevista, com o coração dividido entre a catequese e as manhãs de domingo passadas em frente à televisão, a ver bandas desenhadas na RTP. A paixão pelos desenhos animados viria a sair vencedora e, passados poucos anos, Américo deixou a catequese — e a família deu-lhe total liberdade para o fazer.

“Para alguns, sou um temível seguidor de Francisco. Assim seja.” Um dia com Américo Aguiar, o novo cardeal português

Durante a infância, Américo apaixonou-se especialmente pelo universo do Tio Patinhas, do Pato Donald e dos seus sobrinhos, Huguinho, Zezinho e Luisinho. Foi o contacto com essas personagens que o levou a ambicionar tornar-se escuteiro — já que uma boa parte das histórias eram dedicadas às aventuras escutistas dos três sobrinhos. Quando, na paróquia de Leça do Balio, foi criado um agrupamento de escuteiros, Américo Aguiar apresentou-se de imediato — e foi aí que descobriu que, para ser escuteiro, teria de regressar à catequese. Ainda resistiu à ideia, mas teve mesmo de regressar — e acabou por fazer a primeira comunhão e a promessa de explorador no mesmo dia.

Foi no escutismo que Américo Aguiar descobriu dois elementos fundamentais da sua vida: o ambientalismo (que o levaria à vida política) e a vocação sacerdotal.

“O rio Leça, há trinta anos, ou quarenta, era um cano de esgoto. Foi também — não foi só, mas também — com o trabalho destes jovens, onde militava ativamente o Américo Aguiar, que nós começámos a tomar consciência. Porque ele abanou o poder. Ele provocou o poder", contou Narciso Miranda, numa entrevista à TSF.

Com um grupo de colegas escuteiros, Américo Aguiar criou na década de 1980 uma associação de defesa do ambiente, na altura centrada na defesa do rio Leça, que era considerado um dos mais poluídos da Europa. Ainda na juventude, devido a essa associação, Américo Aguiar começou a interagir com os presidentes das autarquias da zona — especialmente Matosinhos e Maia. Foi nesse contexto que travou conhecimento com dois autarcas fundamentais para o seu percurso: Narciso Miranda (em cujas listas viria a concorrer) e José Vieira de Carvalho (que o convidaria para trabalhar consigo na câmara da Maia).

“Conheço o Américo muito bem. Conheço-o desde a década de 1980. A primeira vez que o conheci foi na sua função de escuteiro, na paróquia de Leça do Balio”, contou Narciso Miranda numa entrevista à TSF em julho. “O rio Leça, há trinta anos, ou quarenta, era um cano de esgoto. Foi também — não foi só, mas também — com o trabalho destes jovens, onde militava ativamente o Américo Aguiar, que nós começámos a tomar consciência. Porque ele abanou o poder. Ele provocou o poder. Provocou o poder com uma humildade e uma generosidade impressionante, que nos impressionava, que nos tocava. Lembro-me de conversar muito com o meu colega, que já faleceu, o José Vieira de Carvalho. E nós dizíamos um ao outro: ‘Nós temos de ouvir pessoas como estas. Temos de os apoiar, incentivar. Mesmo que seja para eles nos criticarem, nos darem porrada.’ E, portanto, o rio Leça ganhou muito com isso. O rio Leça hoje não é nada do que era nesse tempo.”

Nas eleições autárquicas de 12 de dezembro de 1993 (justamente o dia em que completou 20 anos de idade), Américo Aguiar integrou as listas do PS no concelho de Matosinhos e foi eleito para a Assembleia de Freguesia de Leça do Balio e como deputado municipal em Matosinhos. Durante dois anos, dedicou-se à política, acumulando as funções políticas em Matosinhos com as funções técnicas na Maia — em cuja câmara municipal, liderada pelo PSD, exerceu o cargo de “eco-conselheiro”. Em entrevista ao Observador, lembrou que foi “o primeiro eco-conselheiro do país”, trabalhando “exclusivamente na questão da educação ambiental”, percorrendo as escolas do concelho em ações de formação e sensibilização para as questões ambientais.

Em 1995, porém, deixou a vida política para entrar no seminário. Para compreender o que aconteceu, é preciso recuar novamente à juventude de Américo Aguiar — concretamente ao momento em que José Teixeira, um dos seus chefes de escuteiros, propôs ao jovem Américo que experimentasse o pré-seminário. Aguiar desconfiou, mas acabaria por aceitar participar nos encontros mensais do pré-seminário, enquanto seguia o seu caminho normal nos estudos. Em 1993, ainda chegou a ingressar durante um par de meses no seminário propriamente dito, mas acabou por recuar e voltar a casa: a morte do pai e as dificuldades financeiras da família levaram-no a repensar as suas escolhas. Foi nesse momento, depois da primeira experiência de seminário, que se dedicou à vida política.

No verão de 1995, após dois anos de vida política, ainda sentia a falta de algo. “Penso que não me sentia feliz, realizado, apesar de parecer ter tudo aquilo que um jovem com aquela idade podia querer”, contou ao Observador. Naquele verão, decidiu ir ao seminário de Ermesinde falar com o reitor, o cónego António Augusto de Sousa Marques, que lhe garantiu: “Meu amigo, nós estávamos à tua espera. Se quiseres voltar em setembro, voltas. Mas com uma condição: tens de rasgar com todas essas coisas. Porque, da outra vez, tu vieste, mas não vieste.” A partir daquele momento, Américo Aguiar começou a pensar seriamente na possibilidade de seguir uma vida eclesiástica — e, em setembro de 1995, já perto de completar 22 anos, entrou no seminário, onde ganhou a alcunha de “cardeal”, devido à célebre figura do cardeal Américo Santos Silva, conhecido cardeal do Porto no século XIX.

Em 2000, completou a formação em Teologia na Universidade Católica do Porto, com uma tese intitulada “Cristianismo réu do pecado ecológico?”, propondo já uma abordagem teológica das questões ambientais a que, quinze anos depois, o Papa Francisco voltaria, com a publicação da encíclica Laudato Si’.

“Para alguns, sou um temível seguidor de Francisco. Assim seja”, disse numa entrevista ao Observador. Surpreendido pela nomeação cardinalícia, Américo Aguiar garantiu que pretende assegurar, na qualidade de cardeal, que “o legado do Papa Francisco tem mais 30 anos de vida”.

Américo Aguiar foi ordenado padre em 8 de julho de 2001, pelo então bispo do Porto, Armindo Lopes Coelho. No início da sua carreira eclesiástica, ainda foi pároco durante cerca de um ano, em Azevedo de Campanhã, na periferia do Porto, até ter sido chamado para trabalhar no Paço Episcopal do Porto. A partir dali, chefiou o gabinete de comunicação da diocese durante vários anos e foi chefe de gabinete de diferentes bispos do Porto. Nessas funções, fez também um mestrado em Ciências da Comunicação — porque, lembra hoje, não chegava a “boa vontade” para fazer um bom trabalho na área da comunicação dentro da Igreja. A ligação à área da comunicação social levá-lo-ia a ser nomeado, em 2016, presidente do Grupo Renascença Multimédia, o grande grupo de comunicação da Igreja Católica em Portugal.

Durante os quase 20 anos como padre no Porto, conheceu o bispo Manuel Clemente (bispo entre 2007 e 2013), de quem se tornou o braço-direito — e foi também presidente da Irmandade dos Clérigos. Foi ele quem promoveu as obras de restauro da Torre dos Clérigos, que em 2014 devolveram a torre à cidade do Porto, motivo pelo qual ainda hoje é tido em grande consideração na cidade. Como grande operacional do bispo Manuel Clemente (na entrevista ao Observador, não hesitou em classificar-se como “cão-de-fila” do bispo), tornou-se muito próximo do homem que em 2013 seria nomeado patriarca de Lisboa — e que não tardou a levá-lo para a capital.

Foi justamente por recomendação de Manuel Clemente junto da Santa Sé que Américo Aguiar foi, em 2019, nomeado bispo auxiliar de Lisboa. A sua principal missão nos quatro anos que passou no cargo foi a organização da Jornada Mundial da Juventude — uma tarefa que já executava discretamente desde 2018, quando esteve no Panamá a observar a organização da anterior edição da JMJ já com vista à possível vitória da candidatura portuguesa. Quando se tornou claro que Portugal receberia a edição de 2022 da JMJ (adiada para 2023 devido à pandemia), Américo Aguiar foi elevado a bispo e tornou-se no principal responsável pela organização do evento — o que o tornou num dos mais conhecidos clérigos do país.

Apesar de ter conquistado rapidamente a simpatia da opinião pública, Américo Aguiar esteve longe de ser unânime entre o clero de Lisboa. Alvo de duras críticas nos bastidores eclesiásticos, Américo Aguiar foi frequentemente acusado de falta de densidade teológica e intelectual, demasiada informalidade e excessiva ligeireza nas declarações. Também foi especialmente visado pelos mais conservadores, quando disse, em entrevista à RTP, que a Jornada Mundial da Juventude não tinha como objetivo “converter” os jovens ao Cristianismo — uma declaração polémica que o obrigou a explicar-se em público. Em entrevista ao Observador, admitiu ficar “triste” quando lê algumas das “coisas muito feias e muito negativas” que alguns dizem sobre ele.

“Para alguns, sou um temível seguidor de Francisco. Assim seja”, disse. Surpreendido pela nomeação cardinalícia num dia em que estava a ajudar voluntários da JMJ a preparar kits para os peregrinos, Américo Aguiar garantiu na mesma entrevista que pretende assegurar, na qualidade de cardeal, que “o legado do Papa Francisco tem mais 30 anos de vida”. Em 21 de setembro, o Papa Francisco nomeou-o bispo de Setúbal. Este sábado, é formalmente criado cardeal no Vaticano.

Manuel Clemente

— Patriarca emérito de Lisboa
— 75 anos
— Eleitor

ANA MOREIRA/OBSERVADOR

Durante a última década, foi o mais visível dos cardeais portugueses: além de ter sido até ao final do verão deste ano o patriarca de Lisboa (um cargo que, por gozar de uma considerável exposição mediática e de um conjunto de regalias históricas, é frequentemente e erradamente associado a um hipotético chefe da Igreja Católica em Portugal), Manuel Clemente foi também o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa entre 2014 e 2020, altura em que foi, efetivamente, o principal rosto da Igreja portuguesa.

Reputado historiador, é autor de uma vasta obra sobre a história da Igreja, a história de Portugal e o Catolicismo na sociedade portuguesa. Foi também ele o grande promotor da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa — evento que representou o culminar do seu período à frente do patriarcado de Lisboa —, mas os seus últimos anos como patriarca acabaram por ficar parcialmente marcados pela crise dos abusos sexuais de menores e pelo surgimento de várias notícias que davam conta de falhas no modo como, no passado, tinha lidado com suspeitas.

Manuel Clemente nasceu em Torres Vedras no dia 16 de julho de 1948. A primeira ideia de uma vocação sacerdotal surgiu ainda na infância, quando era acólito na sua paróquia — e nasceu num momento concreto, na sacristia da igreja de São Pedro, em Torres Vedras, depois de uma missa presidida pelo padre Joaquim Maria de Sousa, figura maior do século XX naquele concelho. “Deveria ter 8 ou 9 anos, estava a ajudar à missa (nessa altura chamava-se ‘menino de coro’, não acólito) presidida pelo padre da minha paróquia, o padre Joaquim Maria de Sousa, de quem tenho tão boa recordação”, recordou numa entrevista ao diretor da Agência Ecclesia, Paulo Rocha, publicada no livro Uma Casa Aberta a Todos (Paulinas, 2013). “Lembro-me como se fosse hoje. Até me lembro do sítio na sacristia, de estar a vê-lo a tirar as vestes sacerdotais e dizer: eu quero ser como o padre Joaquim! Lembro-me perfeitamente desse momento.”

Em casa, os pais não recusaram a ideia de Manuel Clemente, mas deram-lhe um conselho: "Primeiro, forma-te, depois vês!"

Numa entrevista divulgada pela Câmara Municipal de Torres Vedras, Manuel Clemente lembrou como o padre Joaquim Maria de Sousa era “uma figura muito importante” para a cidade, “quer no plano religioso, quer no plano social desses anos 50”. O sacerdote, que estava em Torres Vedras desde o final dos anos 30, “era alguém muito envolvido na vida terra” — e tornou-se uma referência para Manuel Clemente. Na mesma entrevista, o então patriarca de Lisboa lembrou como, na sua infância, “não havia televisão” e isso foi “muito importante” para moldar as suas perspetivas. “Eu conhecia aquilo que via: entre a família, aquele largo onde eu brincava com os outros vizinhos, muita gente que por ali morava, e depois a igreja da Graça, da catequese, da minha vida propriamente católica ativa, a partir dos seis anos.”

Naquele dia, perante a figura referencial do padre Joaquim, acendeu-se a luz da vocação sacerdotal — mas ainda faltariam alguns anos para que ela se concretizasse. Em casa, os pais não recusaram a ideia de Manuel Clemente, mas deram-lhe um conselho: “Primeiro, forma-te, depois vês!” Seguindo as advertências dos pais, Clemente fez o resto do percurso escolar normal (primeiro em Torres Vedras e depois em Lisboa) e, quando chegou a altura de seguir para os estudos superiores, foi estudar História na Faculdade de Letras — e só depois seguiria para o seminário.

“Do que aconteceu entre a adolescência e a juventude, absolutamente normais para qualquer jovem estudante dos anos 60 que fosse católico e que andasse ligado à paróquia, ao escutismo, à Ação Católica, etc., o que acabou por ir prevalecendo foi a concentração num tipo de atividades que tem a ver com a Igreja, com fé, com conversas de assuntos religiosos. E foi isso que, depois do curso universitário, me levou ao seminário. Porque também não tinha disponibilidade interior para outro tipo de vida”, contou naquela entrevista ao diretor da Agência Ecclesia. Desde cedo ligado ao escutismo católico, Manuel Clemente seria um dos principais dinamizadores daquele movimento na região Oeste, usando com frequência a expressão “Igreja acampada” para descrever a espiritualidade típica do escutismo.

A realidade familiar levá-lo-ia a envolver-se no estudo da história. “Significativamente e desde muito cedo, a dimensão histórica das coisas esteve presente. Nasci numa família com alguns parentes idosos, onde se contavam episódios pessoais que entroncavam na história nacional, desde meados do século XIX”, explicou. “Creio que este foi um fator determinante, para que o sentido do tempo e do devir se tornasse medular no meu modo pessoal de ser e de sentir.”

"Perguntava-me muito, ainda antes de cursar Teologia, quando era aluno de História aqui na Faculdade de Letras de Lisboa, como é que, apesar de todos estes solavancos da História — que são solavancos fortes —, o Catolicismo resiste, persiste, depois parece que desapareceu, depois volta a aparecer. Estes veios profundos. Era isso que me interrogava."

Manuel Clemente esteve na universidade entre o final da década de 60 e o início da década de 70, num momento em que as grandes questões na Faculdade de Letras se prendiam com “saber como se haveria de criar a melhor das sociedades”, lembrou. Perante a “proposta marxista” e a “existencialista”, o jovem Clemente diz não ter encontrado em nenhuma as respostas para “a questão do drama humano”. Foi depois dessa experiência universitária que veio a ideia do seminário, iluminada ainda pela recordação daquele momento com o padre Joaquim. “Estávamos no princípio dos anos 70. Lembro-me de ter tido um primeiro contacto com o Seminário dos Olivais em 1972 e depois entrei efetivamente em 73”, contou na mesma entrevista, em que também lembrou que entrou no seminário em contracorrente, num momento histórico em que “toda a gente estava a sair de lá”.

Em junho de 1979, depois de completar o curso de Teologia, Manuel Clemente foi ordenado padre. Mas a História manter-se-ia sempre o seu grande campo de especialização intelectual — tanto que o seu doutoramento seria em Teologia Histórica. O tempo passado na Universidade de Lisboa marcaria para sempre o seu interesse de investigador. “Na História, na investigação, nas publicações, anda-se sobretudo à volta do que é o Catolicismo em Portugal no seu sentido mais profundo. Perguntava-me muito, ainda antes de cursar Teologia, quando era aluno de História aqui na Faculdade de Letras de Lisboa, como é que, apesar de todos estes solavancos da História — que são solavancos fortes —, o Catolicismo resiste, persiste, depois parece que desapareceu, depois volta a aparecer. Estes veios profundos. Era isso que me interrogava”, contou na entrevista divulgada pela Câmara de Torres Vedras.

“Toda a minha investigação foi nesse sentido, de estudar esses veios profundos do Catolicismo português. Os movimentos, os grupos, a presença do laicado muitíssimo forte, as redes familiares — até pela minha própria experiência sei isso —, que são, no fundo, os suportes desta vivência católica, que por vezes é muito atacada na sua organização, mas que permanece nestes veios profundos. Isto é o que se chama, em termos de historiografia atual, o movimento católico. E os meus estudos de História são quase todos sobre isso”, acrescentou Manuel Clemente.

Depois da ordenação sacerdotal, teve uma breve experiência paroquial, como coadjutor das paróquias de Torres Vedras e Runa. Mas, logo no ano seguinte, em 1980, foi chamado novamente para a vida académica — central na sua vocação sacerdotal. Durante 25 anos, a sua vida centrou-se no Seminário dos Olivais, o principal seminário do patriarcado de Lisboa, de que foi prefeito, vice-reitor e reitor. Além de formador no seminário, foi professor de História da Igreja na Universidade Católica entre 1975 e 2013 — mesmo já como bispo —, além de ter, paralelamente, exercido várias funções como assistente de movimentos e grupos (mantendo-se sempre ligado ao escutismo católico).

Além do sínodo e da JMJ, que foi o grande momento que marcou o final do tempo de Manuel Clemente como patriarca de Lisboa, o período em que Clemente liderou o patriarcado ficou também marcado pela crise dos abusos sexuais de menores no contexto da Igreja.

Em novembro de 1999, depois de vinte anos como padre, Manuel Clemente foi nomeado bispo auxiliar de Lisboa — para auxiliar José Policarpo, que se tinha tornado patriarca de Lisboa no ano anterior. Em janeiro de 2000, foi ordenado bispo e passou sete anos como auxiliar de Lisboa. Em 2007, o Papa Bento XVI nomeou-o bispo do Porto, onde ficou até 2013, ano em que o Papa Francisco o nomeou patriarca de Lisboa. Seguindo a tradição, foi elevado ao cardinalato em fevereiro de 2015. Em 2023, depois de completar 75 anos de idade, renunciou ao cargo de patriarca de Lisboa, sendo desde então patriarca emérito.

Apesar de ser considerado, no contexto da Igreja Católica portuguesa, um “conservador moderado e um homem profundamente espiritual”, Manuel Clemente foi sempre um bispo particularmente alinhado com as ideias do Papa Francisco. “Nós estamos numa grande mudança de civilização e de cultura, que vai gerar outro tipo de organização da vida e de partilha de ideias, na qual nos temos de manter como comunidade cristã”, dizia Clemente em 2013.

Como patriarca de Lisboa, Manuel Clemente dinamizou o Sínodo Diocesano de Lisboa, um processo sinodal lançado em 2014 e concluído em 2016 com a produção de uma constituição sinodal — que foi aplicada nos anos seguintes —, e liderou a candidatura da capital portuguesa à organização da Jornada Mundial da Juventude, inicialmente marcada para 2022 e adiada para 2023 devido à pandemia de Covid-19.

Além do sínodo e da JMJ, que foi o grande momento que marcou o final do tempo de Manuel Clemente como patriarca de Lisboa, o período em que Clemente liderou o patriarcado ficou também marcado pela crise dos abusos sexuais de menores no contexto da Igreja. Foi ele que, na qualidade de presidente da Conferência Episcopal, representou os bispos portugueses na cimeira organizada pelo Papa Francisco em fevereiro de 2019 para debater a resposta da Igreja Católica à crise dos abusos. Em abril desse ano, foi Manuel Clemente o primeiro bispo português a decidir criar uma comissão diocesana de proteção de menores — ainda antes de o Papa Francisco ter obrigado todos os bispos do mundo a fazer o mesmo. Da comissão faziam parte, entre outros elementos, o antigo Procurador-Geral da República Souto de Moura, um antigo diretor da Polícia Judiciária, um antigo diretor nacional da PSP, o pedopsiquiatra Pedro Strecht (que viria mais tarde a liderar uma comissão independente para investigar a realidade dos abusos em Portugal) e a psicóloga Rute Agulhas (hoje a principal responsável pela resposta da Igreja às vítimas de abusos).

Contudo, apesar de ter sido um dos bispos portugueses visivelmente mais empenhados no combate aos abusos na Igreja Católica, o último ano de Manuel Clemente como patriarca de Lisboa acabaria por ficar marcado por uma sucessão de notícias negativas.

No final de julho de 2022, o Observador noticiou que Manuel Clemente, já na qualidade de patriarca de Lisboa, se tinha reunido com uma vítima de abusos e escutado a sua história, mas que depois não fez nada em relação ao sacerdote apontado como o autor dos abusos, mantendo-o em funções de capelania e sabendo que continuava à frente de uma associação paralela onde contactava com crianças e jovens. Na altura, o patriarcado de Lisboa confirmou o encontro de Manuel Clemente com a vítima, mas justificou que a própria vítima “não quis divulgar o caso, mas sim que não se voltasse a repetir” — e que a Igreja não tinha recebido “qualquer outra queixa ou observação de desapreço” sobre o padre.

O caso gerou tal controvérsia que Manuel Clemente acabou por publicar uma carta aberta sobre a situação. Nessa carta, o patriarca de Lisboa explicou que o caso tinha sido tratado pelo seu antecessor, José Policarpo, na década de 1990, segundo a prática da altura, que o padre suspeito foi sempre acompanhado e que não considerou que a conversa que teve com a vítima em 2019 representava uma nova denúncia — pelo que não fez nada com a informação. Ainda assim, admitiu que “este e outros casos do conhecimento público e que foram tratados no passado não correspondem aos padrões e recomendações que hoje todos queremos ver implementados”.

Mais comprometedora foi a notícia revelada no início de agosto de 2022 pela RTP. Segundo o canal público, Manuel Clemente terá mesmo protegido um padre suspeito de abusos em 2003, quando era ainda bispo auxiliar de Lisboa. Em causa estava o caso do padre Inácio Belo, que tinha sido denunciado por várias situações de abuso alegadamente ocorridas durante a década de 1990 na zona Oeste. O caso foi reportado em 1997 ao anterior patriarca, José Policarpo, que optou por mudar Inácio Belo para uma paróquia da cidade de Lisboa — onde voltaram a surgir denúncias, no contexto do grupo de escuteiros. Em 2003, um grupo de chefes de escuteiros da direção do agrupamento foi, então, falar com Manuel Clemente, à época bispo auxiliar e reitor do seminário dos Olivais. Contudo, de acordo com duas testemunhas que falaram sob anonimato à RTP, Clemente terá afastado os chefes de escuteiros, dizendo-lhes que para bem do escutismo e da Igreja teriam de se afastar, rezar pelo padre e acabar com a “confrontação”.

Em agosto de 2023, foi Manuel Clemente quem presidiu à missa de abertura da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, acolhendo o Papa Francisco para a primeira edição portuguesa do maior acontecimento da Igreja Católica a nível global.

Alguns dias depois da emissão da reportagem, o patriarcado de Lisboa veio a público dizer que Manuel Clemente só tinha tido conhecimento do caso do padre Inácio em 2013, quando decorreu uma investigação canónica ao assunto (que foi levantado, na altura, por um conjunto de denúncias da então provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, na sequência do escândalo público provocado pelo caso do padre do seminário do Fundão). Antes disso, no período que Manuel Clemente passou no Porto, o caso até tinha passado pela justiça civil e acabara arquivado por prescrição — e o padre tinha sido enviado para o Algarve. Sobre a conversa com os chefes de escuteiros noticiada pela RTP, Clemente não chegou a dar qualquer informação.

No meio das controvérsias do verão de 2022, Manuel Clemente viajou até Roma para se reunir com o Papa Francisco — e chegou a ser noticiado que o encontro tinha servido para o cardeal patriarca de Lisboa colocar o seu lugar à disposição. Contudo, rapidamente se tornou claro que Clemente se manteria como patriarca de Lisboa até depois da JMJ. Recentemente, numa entrevista à Agência Ecclesia a propósito dos seus 75 anos de idade, disse que apresentou o seu pedido de renúncia ao Papa depois do falecimento do bispo auxiliar Daniel Batalha Henriques, um acontecimento que deixou o patriarcado de Lisboa praticamente sem bispos para o futuro próximo. Questionado sobre se as questões em torno dos abusos tinham motivado o pedido de renúncia, Clemente garantiu que “não diretamente”.

Em agosto de 2023, foi Manuel Clemente quem presidiu à missa de abertura da Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, acolhendo o Papa Francisco para a primeira edição portuguesa do maior acontecimento da Igreja Católica a nível global. Poucos dias depois da JMJ, o Papa Francisco anunciou que o bispo Rui Valério seria o sucessor de Clemente no patriarcado de Lisboa. A partir desse momento, Manuel Clemente passou a ser patriarca emérito, embora mantenha o direito de voto no conclave até completar 80 anos de idade.

José Tolentino Mendonça

— Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação
— 57 anos
— Eleitor

ANA MOREIRA/OBSERVADOR

“Sou um cristão que escreve poesia.” Em abril de 2018, numa longa entrevista ao Observador, o padre Tolentino, como sempre foi conhecido nos meios intelectuais portugueses, recusava o rótulo de “poeta religioso”. Durante anos, Tolentino Mendonça foi um dos intelectuais mais respeitados do país: padre e poeta, autor de uma vasta obra literária e doutorado em Teologia Bíblica, foi capelão da Capela do Rato, importante pólo religioso-cultural da cidade de Lisboa, professor da Universidade Católica e colunista do Expresso. Tornou-se numa das vozes literárias mais admiradas do país, dentro e fora dos círculos católicos.

Até que, em 2018, a sua vida se transformou radicalmente: o Papa Francisco escolheu-o para pregador do retiro anual do Papa e dos membros da Cúria Romana. Nessa ocasião, o portento intelectual de Tolentino impressionou Francisco. No verão do mesmo ano, o Papa escolheu o padre Tolentino para arquivista e bibliotecário da Santa Sé, nomeando-o arcebispo e levando-o para Roma para tutelar um dos arquivos mais importantes da humanidade. No ano seguinte, foi elevado a cardeal — em menos de dois anos, passava de padre em Lisboa a cardeal na Cúria Romana. Em 2022, na sequência da reforma implementada por Francisco, Tolentino Mendonça foi escolhido para prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, tornando-se no principal responsável da cúpula da Igreja Católica global pelos setores da cultura e da educação. Nestas funções, tem promovido o diálogo entre a Igreja Católica e o mundo cultural contemporâneo, bem como tutelado uma rede de universidades e escolas católicas presentes em todo o mundo.

“Eu não sabia o que era o outono. Em África há duas estações, o verão e o inverno, e não tinha aquela experiência, e lembro-me perfeitamente que foi das coisas que marcaram a vida daquele miúdo, andar à procura do outono e a tentar descobrir, na tonalidade das folhas, alguma sabedoria do tempo que eu ainda não tinha apreendido”, lembrou ao Observador. “De repente, passar de duas estações para quatro é valorizar os estados intermédios, e isso é um saber importante na vida.”

José Tolentino Mendonça nasceu a 15 de dezembro de 1965 em Machico, na ilha da Madeira, mas mudou-se com apenas um ano de idade para o Lobito, em Angola. Ali já viviam o seu pai e os seus tios, uma família de pescadores. Foi, portanto, a vida da pesca artesanal, bem como as amplas paisagens angolanas, aquilo que marcou a infância de Tolentino Mendonça. Ao Observador, recordou a “sorte de vir de um mundo ainda ligado às profissões artesanais”, que lhe deu “um contacto com a natureza, com os elementos” e onde diz haver “uma disponibilidade quase contemplativa”.

“Lembro-me de, pequeno, nas férias escolares, ir com o meu pai e com a companhia do barco, e lembro-me de estar sentado na proa a olhar o fundo do mar, a olhar mais distante, a paisagem da terra que se ia avistando, e isso de certa forma também deu uma largueza ao meu olhar”, contou. Aos nove anos, depois do 25 de Abril, a família regressou à ilha da Madeira, onde Tolentino Mendonça se confrontou com um lugar totalmente diferente das grandes paisagens da sua primeira infância: “No microcosmos insular, tudo é muito concentrado, está lá tudo. Mas tudo numa dimensão muito pequena, minúscula. O que é uma outra experiência do espaço e uma outra experiência do tempo.”

Tolentino Mendonça. De Angola à Madeira até aos arquivos secretos do Vaticano, a vida do padre-poeta que se tornou cardeal

Foi na Madeira, por exemplo, que descobriu o outono, quando uma professora primária, no quarto ano, desafiou os alunos a irem à rua em busca de sinais do outono. “Eu não sabia o que era o outono. Em África há duas estações, o verão e o inverno, e não tinha aquela experiência, e lembro-me perfeitamente que foi das coisas que marcaram a vida daquele miúdo, andar à procura do outono e a tentar descobrir, na tonalidade das folhas, alguma sabedoria do tempo que eu ainda não tinha apreendido”, lembrou ao Observador. “De repente, passar de duas estações para quatro é valorizar os estados intermédios, e isso é um saber importante na vida.”

Ainda na infância, Tolentino Mendonça começou a descobrir a vocação religiosa em diálogo com a cultura. A avó materna, que não sabia ler nem escrever, foi a sua “primeira biblioteca”, como revelou ao jornal Público. Contava-lhe histórias orais, que sabia de cor, o que o levou a apaixonar-se pela palavra. Outro dos episódios fundamentais na sua vida foi o contacto que teve com o Cântico dos Cânticos, ainda em criança. “Ouvi o Cântico dos Cânticos recitado por uma mulher também analfabeta, que era zeladora da igreja da paróquia onde vivia. Uma vez disse-me aquele poema e fiquei aturdido, extasiado, aquelas palavras apoderaram-se de mim. Nunca tinha ouvido nada assim fascinado. Há um antes e um depois daquele momento. De vez em quando, pedia-lhe que repetisse. Ela não sabia o que era aquilo. Tinha aprendido de cor. Anos mais tarde descobri que era um texto bíblico. Estudei-o muito. Traduzi-o para português.”

Com 16 anos, escreveu o primeiro poema, “A Infância de Herberto Helder”, cujo primeiro verso — “No princípio era a ilha” — era já um prenúncio do que seria a sua obra poética. Não uma poesia religiosa, mas uma poesia repleta de “música bíblica”

“No meu mundo, no mundo da minha infância, havia ainda muitas pessoas analfabetas ou com uma formação escolar muito básica. O que não quer dizer que elas não fossem transportadoras de uma sabedoria”, contou ao Observador. José Tolentino Mendonça entrou no seminário com apenas 11 anos de idade. Já pensava na possibilidade de seguir uma vocação sacerdotal e no seminário deixou-se cativar por um professor, João Henrique Silva, que mais tarde seria diretor regional dos Assuntos Culturais e também diretor do Museu de Arte Sacra. “Era um homem que gostava muito de cinema. Mostrou-me que era possível viver a fé e escolher uma vocação religiosa em relação com o mundo da cultura”, contou ao semanário Sol.

No seminário, contactou pela primeira vez com uma biblioteca, perdendo-se nos corredores das duas grandes bibliotecas do seminário do Funchal. Foi, disse ao Observador, “como entrar num mundo novo”, que teve “uma força de sedução enorme” na criança e no adolescente que era Tolentino Mendonça. Na adolescência, leu Photomaton & Vox, de Herberto Helder, e apaixonou-se pela poesia. “O chegar à poesia, podendo biograficamente não ser uma coisa muito evidente, acabou por ser um processo muito natural. Lembro-me do impacto que teve em mim a leitura do Photomaton & Vox, do Herberto Helder, mas certamente isso misturado com as leituras bíblicas, com o ressoar do mundo mais arcaico da minha infância, despertou uma espécie de possibilidade expressiva, que a poesia me oferecia”, revelou. Com 16 anos, escreveu o primeiro poema, “A Infância de Herberto Helder”, cujo primeiro verso — “No princípio era a ilha” — era já um prenúncio do que seria a sua obra poética. Não uma poesia religiosa, mas uma poesia repleta de “música bíblica”.

“Há uma música bíblica em toda a poesia que eu escrevi, sendo mesmo uma poesia terrena. Eu não escrevo uma poesia religiosa, escrevo poesia, ponto final”, descreveu ao Observador, sublinhando que em toda a sua formação religiosa foi acompanhado por equipas formadoras que estimularam o seu processo de amadurecimento cultural.

Durante perto de duas décadas, o padre Tolentino Mendonça consolidou-se como um dos grandes intelectuais do Portugal contemporâneo, promovendo o diálogo entre a Igreja e o mundo da cultura.

Em 1982, após ter concluído o ensino secundário no seminário do Funchal, entrou nos estudos superiores. Em 1989 concluiria a sua formação superior para, no ano seguinte, ser ordenado padre. No mesmo ano em que foi ordenado, lançou o seu primeiro livro de poemas, Os Dias Contados — o que quase pode ser lido como um sinal das suas duas vocações, o sacerdócio e a poesia, que Tolentino sempre encarou como uma única vocação. Depois da ordenação sacerdotal, na catedral do Funchal, mudou-se para Roma, para fazer um mestrado em Ciências Bíblicas, que completou em 1992. Depois, regressou a Portugal, onde mais tarde viria a completar o doutoramento em Teologia Bíblica na Universidade Católica Portuguesa. A sua tese de doutoramento, sobre um episódio do Evangelho de Lucas, está publicada no livro A Construção de Jesus.

No início da sua carreira eclesiástica, Tolentino Mendonça ainda foi pároco na Madeira e ensinou no seminário no Funchal. Depois do mestrado em Roma, porém, mudar-se-ia para Lisboa, onde foi capelão da Universidade Católica. Foi nesse contexto que o caminho do jovem sacerdote se cruzou com o de Pedro Mexia, à época um jovem estudante de Direito na Católica. “Lembro-me de as pessoas ficarem muito cativadas com o estilo dele. Houve até pessoas que passaram a ir à missa para o ouvir”, contou Mexia ao Observador em 2018, para um perfil sobre Tolentino Mendonça. “Nós dizíamos uns aos outros que achávamos que aquele tipo ia longe. Agora, o Papa também acha.”

Durante perto de duas décadas, o padre Tolentino Mendonça consolidou-se como um dos grandes intelectuais do Portugal contemporâneo, promovendo o diálogo entre a Igreja e o mundo da cultura, a partir da Capela do Rato, da Universidade Católica (onde foi professor entre 2004 e 2018), dos muitos livros que escreveu e até da coluna semanal que assinou no Expresso. “Quando ele escreve um texto no Expresso sobre o Bruce Springsteen como se estivesse a falar de São Francisco de Assis, a primeira reação é de perplexidade. De facto, não há razão nenhuma para essa perplexidade. Ele consegue encontrar pontos de contacto com a dimensão religiosa, mesmo naquilo que, numa cultura, podia parecer hostil ou alheado dessas questões. São fórmulas inesperadas”, resumiu Pedro Mexia ao Observador.

Em dezembro de 2017, o padre Tolentino Mendonça recebeu um convite do Papa Francisco para orientar o retiro espiritual que o Papa e os membros da Cúria Romana fazem todos os anos por ocasião da Quaresma. Pela primeira vez, um português era escolhido para pregar para o Papa. “Olhe, mas está a convidar um pobre padre português para pregar o retiro.”

Na mesma ocasião, o atual capelão da Universidade Católica, padre Miguel Vasconcelos, sucessor de Tolentino Mendonça no cargo, sublinhou a “capacidade” de Tolentino “de olhar para os Evangelhos com a sensibilidade dos artistas”, desenhando uma “teologia contemplativa, com a lupa da estética”. Outro admirador de Tolentino, o crítico literário João Pedro Vala, sintetizava assim ao Observador a interseção entre poesia e teologia: “Quando se ouve um sermão do padre Tolentino, ou se lê um poema ou uma crónica, não existe uma distinção. Os sermões são poéticos, e os poemas, não sendo pregações, vêm da mesma pessoa, têm a mesma doçura. Trata o leitor como um membro da sua paróquia.”

Tolentino Mendonça: “Achava que tinha sonhado que o Papa me tinha convidado para orientar o retiro”

Para Tolentino Mendonça, poesia e teologia são uma só vocação, porque “a Bíblia não deixa de ser uma biblioteca”, como disse ao Observador. “Não deixa de ser um conjunto de poemas, um conjunto de cartas, um conjunto de Evangelhos, um conjunto de apocalipses, de textos de corte, de textos amorosos, de narrativas epopeicas, e por isso o conhecimento que a teoria da literatura, mas também a ciência ou o cinema, nos oferecem sobre o que é uma narrativa ou uma história, o impacto desta palavra no leitor, é absolutamente decisivo para adensar a interpretação e a pertinência da leitura que nós podemos fazer”, explicou. “Eu digo sempre aos meus alunos que um estudioso da Bíblia, ou um padre, tem de ver muito cinema, tem de ouvir muita música, tem de contactar muito com o mundo das artes, tem de conhecer psicanálise, tem de ler antropologia.”

Em dezembro de 2017, o padre Tolentino Mendonça recebeu um telefonema do Papa Francisco. O pontífice tinha escolhido o sacerdote português para orientar o retiro espiritual que o Papa e os membros da Cúria Romana fazem todos os anos por ocasião da Quaresma. Pela primeira vez, um português era escolhido para pregar para o Papa. “Olhe, mas está a convidar um pobre padre português para pregar o retiro, eu não sou um grande teólogo, não sou um pensador ao nível da Cúria Romana. Sou um pobre padre”, respondeu Tolentino Mendonça. “Mas é bom. É isso que eu quero, quero um padre a pregar-me o retiro”, devolveu o Papa.

Durante três meses, Tolentino Mendonça preparou em segredo as meditações do retiro, dedicado ao tema da sede. Nos textos, posteriormente reunidos no livro Elogio da Sede, Tolentino não fez referência apenas a teólogos, santos e escritos sagrados: citou Fernando Pessoa, Lev Tolstoi, Clarice Lispector ou Simone Weil. Na mensagem de agradecimento que lhe dirigiu, e que serve de prefácio ao livro entretanto editado, o Papa Francisco sublinhou a qualidade das “profundas meditações” propostas por Tolentino ao pontífice e ao governo da Igreja. “Partindo do dado exegético, abriram-nos ao mundo contemporâneo através das referências literárias, poéticas e ligadas a acontecimentos da atualidade”, escreveu o Papa, numa mensagem em que agradeceu também a Tolentino a sua “preparação teológica”, a “inspiração poética” e a “experiência pastoral e pessoal”.

Apenas quatro meses depois do retiro, o Vaticano anunciou a nomeação do padre Tolentino Mendonça para os cargos de arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e de bibliotecário da Santa Sé. Ao mesmo tempo, foi ordenado bispo e elevado a dignidade eclesiástica de arcebispo. Na ordenação episcopal, no Mosteiro dos Jerónimos, em julho de 2018, Tolentino Mendonça garantiu que continuaria sempre a ser poeta e assegurou que trabalharia no sentido de “preservar aquele repositório, que é um grande tesouro da Igreja e da Humanidade, e ao mesmo tempo pô-lo a dialogar com a contemporaneidade”.

Em setembro de 2019, quando Tolentino Mendonça era arcebispo e arquivista do Vaticano havia pouco mais de um ano, o Papa Francisco nomeou-o cardeal. O português manteve-se como responsável pelo Arquivo Secreto do Vaticano e pela Biblioteca Apostólica Vaticana até setembro de 2022, quando foi nomeado para o cargo de prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação. Até à nomeação cardinalícia de Américo Aguiar, José Tolentino Mendonça era o mais jovem dos cardeais portugueses — e é atualmente o único cardeal português num cargo de topo da Cúria Romana.

António Marto

— Bispo emérito de Leiria-Fátima
— 76 anos

— Eleitor

ANA MOREIRA/OBSERVADOR

Na manhã de 20 de maio de 2018, o bispo de Leiria-Fátima, António Marto, estava na sacristia da Sé de Leiria a vestir-se para a celebração da missa do domingo de Pentecostes agendada para as 11h30, na qual seriam também crismados cerca de 60 jovens. Poucos minutos antes do início da missa, sentiu o telemóvel vibrar insistentemente. Inicialmente, não atendeu, uma vez que a missa estava quase a começar. Mas, perante a chegada de uma mensagem de voicemail do núncio apostólico em Portugal, não conseguiu esperar pelo fim da celebração: Rino Passigato queria dar-lhe os parabéns, porque tinha acabado de ouvir o Papa Francisco anunciar, a partir de Roma, a nomeação de 14 novos cardeais, e António Marto era um deles.

O pai queria um filho militar e já planeava enviá-lo para os Pupilos do Exército no final da escola primária — até ao dia em que António lhe anunciou que pretendia ir para o seminário e tornar-se padre. O pai ficou “surpreendido” e “desgostoso”: apesar de ser católico, não sonhava ter um filho padre.

Perante a absoluta surpresa, António Marto decidiu guardar a informação só para si e prosseguiu com a celebração sem falar do assunto. Só no final da missa o tema se começou a espalhar pelas dezenas de pessoas presentes na Sé: pela primeira vez desde o final do século XIX, haveria dois cardeais no território português. Além do cardeal patriarca de Lisboa, também seria cardeal aquele teólogo que aprendeu alemão para poder estudar os grandes teólogos europeus, que teve aulas com o cardeal Ratzinger em Roma e que durante anos foi um intelectual racionalista, crítico dos fenómenos da piedade popular — antes de se converter definitivamente a Fátima.

António Marto nasceu em 5 de maio de 1947 em Tronco, uma pequena aldeia do concelho de Chaves, distrito de Vila Real, numa família católica tradicional. O pai era guarda fiscal, a mãe era professora primária e toda a aldeia era profundamente católica. “As nossas grandes referências eram as do calendário cristão e católico”, contou António Marto numa longa entrevista de vida ao Observador em 2017. “Toda a gente ia à missa ao domingo, e era uma festa para toda a gente porque nos encontrávamos, era o grande encontro familiar antes da missa, durante a missa e no fim da missa. Era uma festa. Tudo isso contribuiu também para o meu despertar da fé.”

O mais novo de quatro irmãos (dois deles morreram ainda antes de António nascer), António Marto sentiu a vocação sacerdotal muito cedo. O pároco de Tronco, que morava na casa ao lado, foi uma das grandes referências da sua vida, sobretudo pelo “facto de ele ser uma figura de referência para a comunidade cristã e ao mesmo tempo ser muito estimado por todos, e de ser muito próximo de toda a gente”. Em criança, já pensava que gostava de ser padre, mas não dizia a ninguém — nem mesmo aos pais. O pai queria um filho militar e já planeava enviá-lo para os Pupilos do Exército no final da escola primária — até ao dia em que António lhe anunciou que pretendia ir para o seminário e tornar-se padre. O pai ficou “surpreendido” e “desgostoso”: apesar de ser católico, não sonhava ter um filho padre.

D. António Marto: “Representava melhor o diabo do que o anjo, ironia do destino”

Foram os amigos do pai que o convenceram a deixar o filho ir para o seminário, “até porque o seminário era uma escola para muita gente, que não tinha outras possibilidades de estudo”, revelou António Marto ao Observador. O pai só impôs uma condição: antes de entrar no seminário, teria de fazer o exame de admissão ao liceu, para ter hipótese de lá entrar caso quisesse desistir do seminário.

Aos 18 anos, António Marto tomou a decisão de continuar os estudos de filosofia e teologia e de se tornar padre. "Quando começamos uma vocação é como um namoro, não se começa com os motivos todos perfeitos. É por uma simpatia, por um gosto preferencial."

Com apenas 10 anos de idade, entrou no seminário, onde desenvolveu o gosto pelo estudo das línguas, pelo desporto (jogava voleibol, basquetebol, andebol e até hóquei em campo) e também pelo teatro: entrava em peças de teatro e atuava, com o grupo de seminaristas, em vários lugares da diocese de Vila Real. A questão vocacional, porém, só começou a colocar-se seriamente mais tarde, no final do ensino secundário. Os pais continuavam pouco inclinados para aquela ideia: o pai queria um filho militar e a mãe um filho advogado. Mas, aos 18 anos, António Marto tomou a decisão de continuar os estudos de filosofia e teologia e de se tornar padre. “Quando começamos uma vocação é como um namoro, não se começa com os motivos todos perfeitos. É por uma simpatia, por um gosto preferencial. E, depois, à medida que nos vamos conhecendo e purificando as motivações, então chegamos a uma decisão mais madura, que só aconteceu aí pelos 20 anos.”

Estudou teologia em Vila Real e no Porto e terminou o curso com 22 anos — dois anos antes de atingir os 24, idade mínima para a ordenação sacerdotal. Nesses dois anos, trabalhou numa fábrica de metalurgia sem dizer a ninguém que era seminarista: cativado pelo movimento dos padres operários, com origem em França, António Marto quis conhecer “o mundo operário, o mundo dos trabalhadores, que tinha fugido para o marxismo” e que a Igreja sentia ter perdido. Foi um período fundamental para perceber “os problemas dos operários, do mundo do trabalho” — e Marto até chegou a fazer parte de um sindicato, algo que, no antigo regime, significava assumir um compromisso político.

No final desse período, António Marto achava que iria começar uma tranquila vida de pároco, mas o seu bispo decidiu enviá-lo para Roma, para fazer um doutoramento em Teologia. Acabaria por ser ordenado padre já em Roma, em novembro de 1971, após um período formativo profundamente marcado pelo Concílio Vaticano II. “A visão da Igreja, que antigamente era uma visão piramidal, passou a ser uma visão da Igreja como povo de Deus, onde todos somos corresponsáveis”, lembrou na entrevista. “Nós vivíamos aquilo como uma paixão. Era um mundo novo que estava diante de nós, era uma missão nova e cativante. O diálogo da Igreja com o mundo, porque antes era uma Igreja fechada sobre si mesma, não existia o diálogo ecuménico. (…) O Concílio foi uma abertura enorme, era uma paixão. Sentíamos que este era o caminho verdadeiro da Igreja. O Concílio foi a grande bússola para a missão da Igreja no mundo de hoje.”

Já depois da ordenação sacerdotal, lançou-se no doutoramento — um período que ficaria marcado pelo contacto próximo com o cardeal Ratzinger, na altura já uma sumidade da teologia europeia. Quando soube que iria estudar para Roma, António Marto começou a estudar alemão no Goethe-Institut. “Eu sabia que os grandes teólogos eram alemães, na altura. Era o Karl Rahner, era o Walter Kasper, era o Karl Lehmann, era o Joseph Ratzinger, e outros. Para fazer um doutoramento em teologia, tínhamos de saber alemão”, explicou. Durante doze anos seguidos, fez férias na Alemanha, consolidando o seu conhecimento da língua.

O conhecimento da língua alemã levou-o, também, a procurar alojamento no colégio alemão em Roma enquanto o colégio português se encontrava em obras. Era ali que se alojava o cardeal Ratzinger, quando estava em Roma. A tese de doutoramento de António Marto era sobre o Concílio Vaticano II e Ratzinger tinha participado no concílio como perito. “Então, um dia pedi-lhe um colóquio e ele dignou-se vir ao meu quarto. No meu quarto existia um piano de colégio e quando ele entrou a primeira coisa que fez foi sentar-se ao piano e tocar. Depois atendeu-me. Era por causa do tema da tese, e como ele tinha sido perito no Concílio, quis fazer algumas interrogações para que ele me esclarecesse”, contou Marto ao Observador.

Foi uma interação com o pai que lhe transformou a vida: certo dia, o pai quis confessar-se e pediu ao filho que ouvisse a sua confissão. António Marto tentou resistir, mas acabou por aceitar. "Vi a delicadeza de consciência daquele homem."

Quando regressou a Portugal depois do doutoramento, o padre e teólogo António Marto era um “racionalista”. Na entrevista ao Observador, lembrou mesmo que olhava “com desdém, com desprezo, para as expressões de piedade popular”, o que ofendia especialmente o seu pai, que era “um homem simples e exprimia a sua fé nessa piedade popular”. Recusava, por exemplo, rezar o terço em família e adotava um posicionamento que “era típico de uma espécie de cultura de elites, que olha com desprezo para o que é do povo, para o que é popular”. Fátima, por exemplo, apesar de ser o principal fenómeno religioso de Portugal, não despertava interesse em António Marto. “Era cético interiormente”, admitiu.

Foi justamente uma interação com o pai que lhe transformou a vida: certo dia, o pai quis confessar-se e pediu ao filho que ouvisse a sua confissão. António Marto tentou resistir, mas acabou por aceitar. “Vi a delicadeza de consciência daquele homem. A autenticidade da fé simples daquele homem, que eu não tinha. Não tinha essa delicadeza nem essa autenticidade. Era mais racionalista, mas depois na prática da vida não tinha”, lembrou.

Desde o regresso a Portugal, António Marto entrou na vida académica na cidade do Porto. Durante largos anos, foi formador no seminário maior do Porto e professor de teologia na Universidade Católica do Porto — e, por isso, nunca foi pároco, embora tenha colaborado com paróquias da cidade do Porto nos fins-de-semana. Reputado teólogo, escreveu livros e artigos e consolidou o seu nome no plano teológico europeu. Em 200o, quando foi escolhido para bispo auxiliar de Braga, chegou a ponderar não aceitar a nomeação: ao fim de 24 anos de vida académica, o teólogo António Marto sentia-se bem era nos corredores da universidade e nos auditórios com os alunos. Chorou na última aula, mas aceitou e seguiu para Braga, onde passou cerca de quatro anos como bispo auxiliar.

Em 2004, foi escolhido para bispo de Viseu, uma diocese onde esteve apenas um ano e meio. Em janeiro de 2006, recebeu da nunciatura apostólica a indicação de que tinha sido escolhido para bispo de Leiria-Fátima. Quis recusar. “Não se faz isto a uma diocese que teve o bispo doente durante dois anos, eu cheguei e o primeiro ano foi para conhecer, no segundo ano estava a lançar o programa pastoral e agora de repente quebra-se tudo”, disse ao núncio, pedindo uma audiência com o próprio Papa Bento XVI. Não teve audiência, mas escreveu-lhe uma carta: duas páginas A4 com objeções, mas com a garantia de que, se o Papa mantivesse a decisão, aceitaria.

“Depois estive um mês sem resposta. Iludi-me, pensei que já estariam à procura de outro, e passados mais quinze dias vem um telefonema de Roma, do cardeal da Congregação para os Bispos. Começou por um grande cumprimento e eu entendi tudo logo. Ele disse-me: ‘Ouça, eu e o Santo Padre estivemos a ler a sua carta e o Santo Padre quer que seja o senhor, porque quer um bispo teólogo em Fátima’. E disse-lhe assim: ‘Então diga ao Santo Padre que eu aceito’”, contou ao Observador.

Foi bispo de Leiria-Fátima durante 16 anos. Nesse período, recebeu dois papas no santuário — Bento XVI em 2010 e Francisco em 2013 —, organizou as celebrações do centenário das aparições e viu os pastorinhos Francisco e Jacinta serem canonizados

O teólogo racionalista e cético de Fátima tornava-se bispo de Fátima. Em bom rigor, naquela altura já não era exatamente um cético. Em 1997, tinha sido convidado para uma conferência em Fátima e aceitou. Por “honestidade intelectual”, decidiu ler as Memórias da Irmã Lúcia, que o impressionaram. Leu o livro três vezes e deu-se conta de que estava perante algo “muito sério”, mais do que imaginava. Com o tempo, converteu-se definitivamente ao fenómeno de Fátima e tornou-se efetivamente num dos principais rostos da mensagem de Fátima, estudando-a do ponto de vista teológico e propondo chaves hermenêuticas para a compreender.

António Marto foi bispo de Leiria-Fátima durante 16 anos. Nesse período, recebeu dois papas no santuário — Bento XVI em 2010 e Francisco em 2013 —, organizou as celebrações do centenário das aparições e viu os pastorinhos Francisco e Jacinta serem canonizados. Ao longo dos últimos anos, assumiu-se também, na Igreja Católica em Portugal, como um dos rostos mais visíveis da ala progressista e alinhada com as reformas do Papa Francisco. Em plena pandemia de Covid-19, quando os grupos mais conservadores da Igreja criticaram os bispos portugueses por suspenderem a comunhão diretamente na boca, António Marto veio a público criticar a ala conservadora e dizer: “O próprio Jesus disse ‘tomai e comei’. Tomai. Não disse ‘abri a boca’. ‘Tomai e comei, tomai e bebei.’ O gesto de Cristo é expressivo.”

“Há uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o Papa Francisco”

Dois anos antes, numa outra entrevista ao Observador que acabaria por ter eco na imprensa internacional, António Marto não poupou nas palavras para dizer que estava em curso “uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o nosso Papa Francisco” — numa altura em que se multiplicavam os escândalos de abusos sexuais de menores, inflamados pelas acusações de encobrimento lançadas pelo arcebispo ultraconservador Carlo Maria Viganò contra o próprio Papa. “Eles [ultraconservadores] não aceitam a reforma do Papa Francisco… Primeiro, tentaram com aqueles cardeais que levantaram aquelas dúvidas [referindo-se à crise das dubia, em 2016], mas ainda dentro daquele respeito institucional, e agora procuraram dar um golpe de morte aproveitando esta ocasião.”

Em 2018, um ano depois do centenário, António Marto foi surpreendido pela decisão do Papa Francisco de o nomear cardeal. Pela primeira vez em mais de um século, Portugal tinha um cardeal que não era o patriarca de Lisboa ou um membro da Cúria Romana. A nomeação foi interpretada, desde o momento, como uma honra pessoal atribuída a António Marto — e não como a transformação da diocese de Leiria-Fátima numa sé cardinalícia. Em 2022, na sequência de alguns problemas de saúde, António Marto — que chegou a ser apontado nos meios eclesiásticos como um possível sucessor de Francisco, sobretudo pelas grandes relações que estabeleceu com os cardeais de todo o mundo, acolhendo-os em Fátima — renunciou ao cargo de bispo de Leiria-Fátima, sendo desde então bispo emérito da diocese.

José Saraiva Martins

— Prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos
— 91 anos
— Não eleitor

ANA MOREIRA/OBSERVADOR

É o mais célebre e histórico dos cardeais portugueses vivos: desde a década de 1950 em Roma, este teólogo beirão é o cardeal português com mais anos de Vaticano, tornou-se bem conhecido dos portugueses como prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (foi com Saraiva Martins nessas funções que, por exemplo, os pastorinhos de Fátima foram beatificados) e os eclesiásticos portugueses que trabalham em Roma reconhecem que foi ele o grande responsável pelo reforço do peso de Portugal e da língua portuguesa nos corredores do Vaticano. Em 2005, foi mesmo apontado como possível sucessor de João Paulo II, tendo participado no conclave que elegeu Bento XVI. Hoje, com 91 anos e já sem direito de voto num futuro conclave, continua a viver em Roma.

José Saraiva Martins nasceu a 6 de janeiro de 1932 em Gagos do Jarmelo, no concelho da Guarda. “Sempre quis ser padre, desde criancinha”, contou o próprio Saraiva Martins numa entrevista de vida ao jornal i, em 2017. “Desde muito pequeno mesmo, talvez quando comecei a ser acólito e a ajudar. Via o padre a dizer a missa e pensava para comigo que queria ser como ele.” Nunca pensou sequer em ser outra coisa: “Eu quis ser padre e agarrei-me a isso, nunca me pus a pensar noutras possibilidades.”

Só com a ajuda da mãe foi possível ultrapassar as resistências do pai, que não queria que o pequeno José fosse para o seminário: numa família de camponeses, com muitos terrenos de cultivo, os filhos eram precisos para o trabalho. Em 1944, com apenas 12 anos de idade, entrou no seminário menor das Termas de São Vicente, em Penafiel, um seminário da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (conhecidos como Missionários Claretianos) — congregação na qual seria ordenado padre em março de 1957, com 25 anos de idade.

"Esta ideia de que os bispos constituem conferências episcopais e também fazem parte do governo da Igreja. Eu escrevi a defender a colegialidade, na altura nem todos eram favoráveis a isso", contou José Saraiva Martins, numa entrevista ao jornal i, em 2017.

Desde cedo, José Saraiva Martins destacou-se como intelectual. Depois da licenciatura em Teologia pela Universidade Gregoriana, completou o doutoramento em Teologia na Universidade de São Tomás de Aquino, também em Roma. Na mesma entrevista, Saraiva Martins lembrou que foi enviado para Roma pelos superiores claretianos, que queriam que prosseguisse os estudos: “Acharam que eu podia doutorar-me em Roma e depois voltar para Portugal. E quando fui pela primeira vez foi com essa intenção de regressar.”

O brilho intelectual do padre Saraiva Martins, porém, levou-o por outros caminhos. Era o início da década de 1960, a década do Concílio Vaticano II e dos acesos debates teológicos. “Quando acabei de me doutorar em Teologia escrevi alguns artigos que foram muito bem recebidos e pediram-me para ficar como professor na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, uma das principais universidades romanas”, lembrou ao jornal i. “Foi sobretudo um artigo muito grande que eu fiz, com mais de 100 páginas, sobre a colegialidade episcopal, que era um dos temas na altura mais discutidos no Concílio Vaticano II. Esta ideia de que os bispos constituem conferências episcopais e também fazem parte do governo da Igreja. Eu escrevi a defender a colegialidade, na altura nem todos eram favoráveis a isso.”

Durante vários anos, o jovem padre continuou sempre como professor universitário em Roma, nunca regressando em definitivo a Portugal. A sua juventude impressionou o próprio Papa. “Uma vez, o Papa João XXIII perguntou-me: ‘Você o que faz em Roma?’. Eu respondi que era professor na Pontifícia Universidade Urbaniana. Ele até estranhou: ‘Tão jovem e já é professor na Universidade!’”, recordou na mesma entrevista. Entre o final da década de 1970 e o final da década de 1980, Saraiva Martins cumpriu três mandatos como reitor da Pontifícia Universidade Urbaniana — uma das mais importantes universidades romanas —, escreveu vários livros e afirmou-se como um importante teólogo da praça vaticana. Em 1983, como reitor da Urbaniana, foi secretário especial da VI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, dedicada à “penitência e reconciliação na missão da Igreja”.

Poucos anos mais tarde, em 1988, o Papa João Paulo II levou o padre Saraiva Martins para a Cúria Romana, nomeando-o secretário da Congregação para a Educação Católica — um cargo que, em termos leigos, pode comparar-se a um secretário de Estado no ministério da Educação, só que responsável pela política educativa na globalidade da Igreja Católica. Em julho desse ano, recebeu também a ordenação episcopal. Durante dez anos, ocupou esse cargo, até que em maio de 1998 foi nomeado prefeito da Congregação para as Causas dos Santos — o organismo da Santa Sé responsável por coordenar os processos de canonização. Em 2001, o Papa João Paulo II elevou-o a cardeal.

Saraiva Martins garante que sempre foi “muito exigente” nos processos de beatificação e canonização que lhe passaram pelas mãos nos dez anos em que liderou a Congregação para as Causas dos Santos. "Todos os processos têm histórias muito interessantes e que dão muito trabalho."

No cargo de prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, o cardeal Saraiva Martins tornou-se no mais conhecido rosto português na cúpula da Igreja Católica e lutou por uma maior representação de Portugal no Vaticano. Vários eclesiásticos portugueses que trabalham em organismos da Cúria Romana recordaram, numa reportagem feita pelo Observador no Vaticano em 2018, a grande insistência de Saraiva Martins junto dos bispos portugueses para que enviassem padres para estudar e trabalhar em Roma, mas também a introdução do português como língua de trabalho na congregação. Durante o seu mandato, foi responsável pelo trabalho que levou aos altares católicos 1.320 novos santos e beatos, incluindo os pastorinhos de Fátima Francisco e Jacinta, São Nuno de Santa Maria, Edith Stein (que morreu em Auschwitz em 1942) e o Padre Pio.

Na já citada entrevista, o cardeal Saraiva Martins garantiu que sempre foi “muito exigente” nos processos de beatificação e canonização que lhe passaram pelas mãos nos dez anos em que liderou a Congregação para as Causas dos Santos. “Todos os processos têm histórias muito interessantes e que dão muito trabalho. É preciso avaliar a condição histórica, a condição médica, a condição teológica. Depois, há uma espécie de parlamento de cardeais que aprovam ou não as condições e os factos e depois o Papa tem de aprovar ou não”, recordou, numa ocasião em que também sublinhou que “a santidade não é o mesmo que a beatificação ou a canonização”. “Esses processos são a aprovação da Igreja da santidade de determinada pessoa, mas todos somos chamados desde o batismo a ser santos. O batismo é isso mesmo: a vocação que a pessoa recebe para ser santo”, destacou.

Em 2008, já depois de ter ultrapassado o limite de idade de 75 anos, deixou as suas funções como prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, tornando-se prefeito emérito. Em 2013, por já ter mais de 80 anos, não pôde participar no conclave que elegeu o Papa Francisco — de quem Saraiva Martins era amigo há vários anos. Continuou sempre a viver em Roma e a escrever livros — mais de três dezenas de volumes sobre vários temas da teologia. Em 2019, a Câmara Municipal da Guarda homenageou-o atribuindo o seu nome a uma avenida na cidade.

Manuel Monteiro de Castro

— Penitenciário-Mor emérito do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica
— 85 anos
— Não eleitor

ANA MOREIRA/OBSERVADOR

Manuel Monteiro de Castro nasceu a 29 de março de 1938 em Santa Eufémia de Prazins, no concelho de Guimarães. Com apenas 23 anos de idade, em julho de 1961, foi ordenado sacerdote — e, durante três anos, exerceu funções na arquidiocese de Braga. Mas, ainda como jovem padre, em 1964, foi enviado para Roma, para estudar Direito Canónico. Em 1967 obteve o seu doutoramento pela Universidade Gregoriana; no mesmo ano, entrou no serviço diplomático da Santa Sé.

O então padre Monteiro de Castro já não voltaria a Portugal: durante toda a sua vida ativa, foi um diplomata, servindo cinco papas e passando por mais de duas dezenas de países em funções oficiais. Foi, durante largos anos, o único português no cargo de núncio apostólico (embaixador da Santa Sé).

Ainda assim, uma carreira diplomática pelo mundo não era o que o jovem padre Manuel sonhava para a sua vida. “Quando me ordenei sacerdote, foi para servir a Igreja. Não importa onde. Evidentemente, a minha linha era para trabalhar na minha terra”, lembrou numa entrevista à Agência Ecclesia em 2011, quando celebrou 50 anos de sacerdócio. Na entrevista, lembrou como, pouco depois da ordenação, foi enviado para estudar em Roma — e como os estudos de direito canónico na capital do catolicismo lhe trouxeram a oportunidade única de ajudar no Concílio Vaticano II, o grande concílio ecuménico que decorreu entre 1962 e 1965 e que moldou a Igreja Católica contemporânea.

O jovem sacerdote trabalhou como assistente do quórum, tendo como missão recolher os votos dos vários bispos participantes para que fosse realizada a contagem eletrónica. “Atendia um certo número de senhores bispos e levava os resultados deles à máquina eletrónica”, explicou à Ecclesia. “Uma experiência muito rica para a minha juventude.”

Foi nessa fase que o jovem padre, ainda na casa dos 20 anos, recebeu o convite para entrar na carreira diplomática. “O reitor do Colégio Português chamou-me e disse-me: ‘Olhe que não temos nenhum português no serviço diplomático da Santa Sé e seria bom se o senhor aceitasse.’ E eu disse-lhe que primeiro consultaria a minha família, e depois consultei a minha família. Vim a Portugal. A minha mãe disse que não, o meu pai disse que sim. E eu então disse-lhe: mas eu de todos os modos continuo sempre sendo sacerdote da diocese de Braga e quando não me sentir bem regresso à minha terra. E assim foi.”

Inicialmente, deveria ter sido enviado como diplomata para a Etiópia. Mas os planos mudariam. “Estava eu na praia e chegou o meu pai com uma carta da Santa Sé, a dizer que eu acabava de ser nomeado para secretário da nunciatura apostólica na Etiópia. E o meu pai, que não era uma pessoa muito ilustrada, mas alguma coisa sabia, disse-me: ‘Olha lá, e como é que vais para lá, se lá na Etiópia está a central da Organização dos Estados Africanos e a nós, os portugueses, nos condenam em todas as reuniões por causa das colónias?’. Estávamos em 1967. (…) Passados oito dias, recebo outra carta do Vaticano a dizer: ‘Por motivos que lhe serão explicados de viva voz, vai para o Panamá.’ Os motivos, nunca me explicaram, mas fui para o Panamá.”

Durante a sua longa carreira como diplomata da Santa Sé, Manuel Monteiro de Castro esteve "em países muito complicados. (...) Não se limitou a ficar a ver o que se passava, teve um papel ativo nos acontecimentos", disse à Rádio Renascença, em 2018, a jornalista Rosário Lira, autora da biografia O Núncio Português (Lucerna, 2018).

Nos primeiros anos da sua carreira diplomática, Manuel Monteiro de Castro passou por países como o Panamá, a Guatemala, o Vietname, o Camboja, a Austrália (onde foi ele a inaugurar a embaixada da Santa Sé), a Papua Nova Guiné, o México e a Bélgica. No início de 1985, o Papa João Paulo II elevou o padre Monteiro de Castro à dignidade de arcebispo, para logo de seguida assumir as funções de núncio apostólico. A primeira representação diplomática que chefiou foi a nunciatura responsável por Trindade e Tobago, Bahamas, Barbados, Belize, Jamaica e Santa Lúcia.

Cinco anos depois, foi nomeado núncio em El Salvador e Honduras. Mais tarde, entre 1998 e 2000, passaria como núncio na África do Sul, Namíbia, Suazilândia e Lesoto — e seria ainda delegado apostólico no Botswana. Em 2000, voltou à Europa, como núncio em Espanha e Andorra. Monteiro de Castro seria ainda nomeado, já pelo Papa Bento XVI, como observador permanente da Santa Sé junto da Organização Mundial do Turismo.

Em 2009, Monteiro de Castro voltou ao Vaticano, para assumir funções na Cúria Romana. Foi secretário da Congregação para os Bispos e do Colégio dos Cardeais, até que, em 2012, foi nomeado Penitenciário-mor do Supremo Tribunal da Penitenciaria Apostólica — um dos três tribunais da Santa Sé, com jurisdição em toda a Igreja Católica sobre os assuntos do foro interno (relacionados ou não com os sacramentos), bem como sobre o uso de indulgências. Esteve nessas funções durante pouco mais de um ano e meio: em setembro de 2013, depois de atingir o limite de 75 anos de idade, renunciou ao cargo. Desde então, é Penitenciário-mor emérito daquele tribunal, continuando a residir em Roma.

Durante a sua longa carreira como diplomata da Santa Sé, Manuel Monteiro de Castro esteve “em países muito complicados, sob o ponto de vista político, mas também sob o ponto de vista do relacionamento da Igreja com os respetivos governos”, disse à Rádio Renascença em 2018 a jornalista Rosário Lira, autora da biografia O Núncio Português (Lucerna, 2018). “Não se limitou a ficar a ver o que se passava, teve um papel ativo nos acontecimentos.”

Nessa entrevista em 2018, a propósito do lançamento da biografia, a jornalista lembrou que Manuel Monteiro de Castro passou por várias situações delicadas na sua carreira diplomática, como o momento em que, colocado na nunciatura na Guatemala, recebeu um telefonema dos guerrilheiros a informá-lo de que alguém deveria ir buscar o corpo do embaixador alemão, que estava cativo e que foi assassinado depois de ter sido recusada uma troca de prisioneiros. Monteiro de Castro testemunhou também o golpe militar nas Antilhas, a guerra do Vietname e os conflitos em El Salvador, onde teve um papel de mediação que seria reconhecido pelas próprias autoridades do país.

“Nós procuramos sempre a paz”, resumiu Monteiro de Castro em entrevista à Ecclesia sobre o seu trabalho diplomático. “Por exemplo, no Vietname e Camboja, fui muitas vezes ao Camboja e trouxemos muitos vietnamitas que lá estavam a sofrer, muitos deles a perder a vida. Trouxemos para o Vietname. No sul do Vietname, uns 60 quilómetros ao sul de Saigon, ou Ho Chi Minh, encontra aldeamentos que foram construídos com meios que a nunciatura conseguia. Inclusivamente, eu inaugurei uma das igrejas lá, embora não fosse núncio e embora não falasse o vietnamita.”

Manuel Monteiro de Castro foi criado cardeal em fevereiro de 2012 por decisão do Papa Bento XVI, depois da sua nomeação como Penitenciário-mor. Em 2013, participou no conclave que elegeu o Papa Francisco. Em 2018, o cardeal Monteiro de Castro completou 80 anos de idade e deixou de ter direito de voto no Colégio dos Cardeais, pelo que já não poderá votar num próximo conclave.

 
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