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A cidade de Nanterre, nos arredores de Paris, tem sido palco de protestos violentos contra a morte de um jovem de 17 anos que foi baleado por um polícia na terça-feira. Milhares de pessoas saíram às ruas, incendiaram carros, atacaram lojas, esquadras, câmaras, escolas, um tribunal e uma prisão e lançaram projéteis sobre as forças de segurança, que tentaram dispersar os tumultos disparando gás lacrimogéneo. Emmanuel Macron reuniu um gabinete de crise e destacou 40 mil agentes para esta quinta-feira, em que decorre a terceira noite de protestos.

Confrontos violentos escalam em França na terceira noite de protestos contra a morte do jovem baleado por um polícia

O Ministério Público abriu um inquérito-crime ao polícia que disparou sobre o jovem — referido pelas autoridades apenas como Nahel M., que conduzia sem documentos quando dois agentes o tentaram parar. O agente que disparou, um homem de 38 anos, foi entretanto acusado de homicídio voluntário na tarde de quinta-feira, aguardando o julgamento em prisão preventiva. A informação foi enviada aos jornais franceses durante a tarde pela autarquia de Nanterre num comunicado.

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“A primeira coisa que fez foi pedir desculpa”, contou na noite desta quinta-feira o advogado do polícia que matou o jovem ao canal de televisão francês BFMTV. Laurent-Franck Lienard acredita que nem todos os manifestantes nos protestos estão à procura de justiça e adiantou ainda que vai pedir recurso da prisão preventiva aplicada ao seu cliente.

Mas, afinal, quem era Nahel e porque foi baleado? O que motivou a violência dos protestos? Neste artigo, reunimos algumas das principais questões em torno do caso que está a revoltar França.

Porque é que a polícia parou Nahel?

O jovem de 17 anos estava a conduzir sem documentos um Mercedes-AMG quando dois agentes da polícia o intercetaram por estar a circular na faixa destinada aos autocarros, pouco depois das 9h de terça-feira (hora local). A idade legal para conduzir em França são 18 anos. Nahel tentou fugir passando um sinal vermelho, mas acabou por ficar parado numa fila de trânsito mais à frente.

Seguiam três pessoas dentro do veículo. Após a tentativa de interceção policial, um dos agentes baleou fatalmente Nahel no peito quando este tentou fugir novamente. A autópsia concluiu que a morte resultou de um único tiro que atravessou o braço esquerdo e atingiu o tórax. Não foram encontrados no carro quaisquer produtos estupefacientes ou álcool.

Numa primeira audiência, o agente alegou que agira “em legítima defesa”. Os agentes descreveram uma tentativa de atropelamento e fuga, mas um vídeo do momento do disparo, revelado pouco tempo depois, mostrou que não se encontravam em perigo, uma vez que o condutor seguiu em frente, estando os agentes posicionados ao lado da sua janela.

A Justiça abriu duas investigações, uma delas por homicídio voluntário. A segunda por causa da fuga da vítima. E até esta decisão tem provocado a indignação da família do jovem, uma vez que, de acordo com a sua advogada, “em França não se pode julgar um morto”.

O que aconteceu nos protestos?

Os últimos dias foram marcados pela violência, com pelo menos 200 detidos e 170 polícias feridos sem gravidade em várias cidades francesas. Os confrontos começaram na terça-feira à noite e continuaram na quarta-feira com ataques a lojas, câmaras e escolas. O Le Figaro reportou ainda uma tentativa de fuga de reclusos na prisão de Fresnes, na mesma zona, tendo o ministro da Justiça visitado a cadeia na quinta-feira de manhã, bem como o tribunal de Asnière que foi incendiado durante a noite anterior.

Em Nanterre, onde os confrontos foram mais intensos, a autarquia referiu que “vários edifícios públicos e privados, incluindo escolas, sofreram danos significativos e inaceitáveis, por vezes irreparáveis.” Pelo menos 25 esquadras foram atacadas na noite de quarta-feira.

Os tumultos levaram o Presidente Emmanuel Macron a convocar ao início da manhã de quinta-feira um gabinete de crise com vários ministros. O chefe de Estado, que qualificou como “injustificável e indesculpável” a morte do jovem, denunciou também “a violência injustificável contra as instituições da República”, e apelou à calma.

Para a mesma noite, França preparou-se com 40 mil agentes de segurança nas ruas, tendo sido convocados para Nanterre o Grupo de Intervenção da Gendarmaria Nacional, a unidade elite da Polícia Nacional, e a Brigada de Investigação e Intervenção.

A “marcha branca” foi, de facto, silenciosa?

A resposta curta é não. Embora a convocatória de Mouina, mãe de Nahel, tenha apelado a uma marcha pacífica e silenciosa em memória ao filho, essa esteve longe de ser a realidade a que se assistiu na tarde de quinta-feira. Pelo menos 6.200 pessoas participaram na procissão que começou por volta das 16h (15h em Lisboa) com um minuto de silêncio perto da autarquia de Nanterre.

A marcha, rodeada de fortes medidas de segurança, começou de forma pacífica mas acabaram por surgir tensões no final do percurso, junto à prefeitura do departamento de Hauts-de-Seine. Vários carros foram capotados e incendiados, gerando uma espessa nuvem de fumo.

Houve vários confrontos entre a polícia e alguns manifestantes. O jornalista francês Clément Lanot partilhou no Twitter alguns vídeos dos confrontos, que mostram, por exemplo, cocktails Molotov a serem lançados sobre as forças de segurança.

Várias cidades francesas tomaram medidas preventivas para quinta-feira. Compiègne e alguns distritos de Neuilly-sur-Marne declararam recolher obrigatório. A cidade de Tours suspendeu a circulação de autocarros e elétricos. A autarquia de Val-d’Oise proibiu o transporte de combustíveis e fogos-de-artifício.

Registaram-se, pelo menos, 100 detenções em todo o país esta quinta-feira. As autoridades esperam que a violência escale nas “próximas noites”, de acordo com uma fonte policial citada pelo Le Figaro. Os receios de violência levaram a embaixada dos Estados Unidos da América a emitir um alerta de segurança. Os tumultos também ganharam expressão em Marselha, Lyon e Toulouse.

Porque é que o episódio gerou tanta violência?

A morte de Nahel reavivou memórias de um outro caso que se deu em França em 2005, quando dois adolescentes — Zyed Benna e Bouna Traoré — morreram eletrocutados depois de se esconderem numa estação elétrica subterrânea enquanto fugiam da polícia depois de um jogo de futebol, no subúrbio parisiense de Clichy-sous-Bois.

O episódio levantou uma onda de protestos que se estendeu por várias semanas. Centenas de pessoas de subúrbios desfavorecidos participaram nos tumultos, incendiando carros e edifícios. Nos anos que se seguiram, França protestou contra vários outros casos de violência policial.

O que diz a classe política?

Gérald Darmanin, ministro do Interior, considerou que a noite de quarta-feira foi de “violência insuportável contra os símbolos da República: câmaras municipais, escolas e esquadras de polícia incendiadas ou atacadas”, como escreveu no Twitter na manhã de quinta-feira.

Éric Ciotti, dos republicanos, e o nacionalista Eriz Zemmour, presidente do partido de extrema-direita Reconquête, apelaram a um estado de emergência imediato. No caso do primeiro, “em todos os lugares onde os incidentes eclodiram”.

Por outro lado, Jean-Luc Melanchon, presidente do França Insubmissa, preferiu fazer “apelos à justiça” para com Nahel. “Os cães de guarda apelam-nos à calma. Clamamos por justiça. Retirem a ação legal contra o pobre Nahel. Foquem-se no polícia assassino e no seu cúmplice”, escreveu no Twitter.

Quem era Nahel?

Nahel M. era um jovem francês de ascendência argelina e marroquina. Filho único, foi educado pela mãe solteira em Nanterre, cidade dos subúrbios, a cerca de 15 minutos de comboio de Paris. Estava a trabalhar como estafeta de entrega de pizzas e era jogador de rugby numa equipa local, os Piratas de Nanterre, tendo estado também inserido numa equipa de integração de adolescentes com dificuldades de integração chamada Ovale Citoyen.

Estava inscrito numa escola em Suresnes, relativamente perto de casa, para se tornar eletricista, de acordo com a BBC, embora a sua educação seja descrita como “caótica” e a assiduidade às aulas fraca. Os jornais franceses indicam que não aparecia na escola há mais de 6 meses. Já era conhecido pela polícia, segundo o Le Figaro: foi detido 12 vezes por vários delitos e tinha-se recusado a obedecer a ordens quatro vezes.

A avó descreveu-o ao jornalista francês Clément Lanot como “um bom rapaz”, que “não tinha problemas com a justiça”. Também a advogada contratada para representar a sua família disse ao “C à Vous” que Nahel não tinha antecedentes criminais, mas Pascal Prache, procurador em Nanterre, já fez saber que era conhecido por não obedecer a sinais de trânsito e que foi chamado a um tribunal juvenil em setembro do ano passado.

Na terça-feira, o adolescente despediu-se da mãe com um beijo antes de esta sair para o trabalho, tendo-lhe dito “amo-te, mãe”. Mounia reagiu à morte do filho perguntando num vídeo em direto nas redes sociais: “O que é que vou fazer agora?”. E acrescentou: “Dediquei-lhe tudo (…) Só tenho um, não tenho 10 [filhos]. Ele era a minha vida, o meu melhor amigo.”

Em declarações à France 5 na noite de quinta-feira, disse que não culpava a polícia pela morte de Nahel, mas “a pessoa que o matou”. E disse ainda: “Ele não precisava de matar o meu filho, havia outras maneiras de lidar com a situação. Uma bala, uma bala, tão perto do peito. Eu não podia imaginar isto.”