O “desembarque” na Madeira de um contingente formado por centenas de inspectores da Polícia Judiciária e por representantes do Ministério Público, com jornalistas à espera no aeroporto do Funchal, previamente avisados e preparados para cobrir o acontecimento – inédito, tanto quanto se sabe – é o mais recente episódio da chamada Justiça-espectáculo que tem vindo a ganhar terreno.

Junte-se à singularidade da operação – que exigiu aviões militares e um dispositivo em terra devidamente organizado -, a “decapitação “ do PSD-Madeira,  a campanha eleitoral em recta final  nos Açores  e a  pré-campanha para as Legislativas, e teremos de reconhecer que, por acaso ou não, os “timings” da Justiça são cada vez mais “parentes”  dos calendários políticos.

Há quem designe, por isso, tais coincidências como uma tendência para a judicialização da política ou para a politização da Justiça, argumentando com a escolha cirúrgica de datas e a farta cobertura mediática.

Ora, poderia a aparatosa operação judiciária ocorrer noutra altura, quando perturbasse menos o andamento da coisa política? Só as autoridades o poderão esclarecer, desde a PGR à PJ.

Deveria a operação ter sido feita de uma forma mais reservada, sem jornalistas “mobilizados” em “estado de prontidão”?

A resposta parece óbvia, para não se infringir o tão invocado segredo de Justiça, como o entendem dois antigos procuradores gerais da República, José Souto Moura e António Cunha Rodrigues, que não hesitaram em quebrar um longo silêncio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em declarações à Rádio Renascença, enquanto Souto Moura considerou que “o facto de estarem lá jornalistas do continente significa que houve uma violação do segredo de justiça”, Cunha Rodrigues não só exigiu uma  ”explicação pública, cabal e urgente”  por  “por razões imperativas de defesa da democracia e do Estado de direito”, como assumiu que se fosse ainda PGR “ é evidente que não permitia que isso acontecesse”.

A palavra de ambos, com a autoridade e o currículo que os identificam, “compensa” o aparente embaraço dos principais partidos, que evitam comentar as investigações em curso, ou por se sentirem condicionados por terem membros seus arrolados em processos, ou por não quererem ser suspeitos de porem causa a independência da Justiça.

A operação desencadeada na Madeira recorda, contudo, uma outra, não menos espectacular, por acaso visando também o PSD, que ocorreu em julho do ano passado, quando as autoridades apareceram de rompante na sede dos social-democratas e em casa do ex-líder, Rui Rio, a pretexto de suspeitas de crimes como peculato e abuso de poderes, por alegado uso indevido de verbas públicas.

Esgotado o ruído mediático, não houve mais explicações, nem se conheceram resultados dessa operação-surpresa.

Terá razão José Pacheco Pereira quando defendeu, recentemente, que “estamos perante uma entidade que está claramente a ter um braço político além do braço judicial”? Saberemos a seu tempo.

Foi necessário esperar mais de um ano para o colectivo de juízas do Tribunal da Relação de Lisboa produzir o acórdão sobre o recurso interposto pelo Ministério Público, inconformado com a sorte da “Operação Marquês” nas mãos instrutórias de Ivo Rosa, que quase inocentou José Sócrates da vasta lista de alegados crimes de que estava acusado.

Os tempos da Justiça são o que são, definitivamente diferentes de quaisquer outros.

Mas é  caso para escrever que o desfecho do recurso “tardou mas arrecadou”, validando a maioria das teses do Ministério Público, sendo  de louvar o trabalho hercúleo  das desembargadoras, plasmado em mais de 600 páginas, nas quais criticam,  com severidade e não pouca ironia,   a “ingenuidade” de Ivo Rosa, por este não ter seguido os fortes “indícios” do  “caminho do dinheiro”, que iam fatalmente desaguar em Sócrates, porque “ninguém gasta milhões que não lhe pertencem” e “a corrupção não costuma ter hora marcada”. São frases marcantes, mas que não devem tirar o sono ao novo desembargador.

A Justiça não costuma “dar ponto sem nó”, e tão cedo os jornalistas levantaram o “cerco” à casa do ex-primeiro ministro na Ericeira – e se esgotava o eco das suas declarações zangadas, entre o irritado e o agressivo -, e já o “desembarque” das autoridades judiciais  na Madeira provocava um inesperado abalo, forçando os presidentes do governo regional, Miguel de Albuquerque, e do Município do Funchal, Pedro Calado,  a renunciarem aos cargos, por terem sido ambos constituídos arguidos e o segundo figurar entre os detidos por suspeitas de corrupção.

Claro que com esta incursão judicial insular, feita com inusitado aparato, o PS respirou de alívio perante o azar do PSD na “lotaria” em que se transformou a indiciação de novos casos polémicos, com óbvia vantagem para o Chega e André Ventura.

Azar, ainda, para o “timing” da apresentação, por Luís Montenegro, do programa económico da Aliança Democrática, com a chancela de vários reputados especialistas, depois de lhe ter corrido bem a Convenção.

Azar, finalmente, à esquerda, porquanto os dois novos líderes do Bloco e do PCP, que já tinham exposto, sem chama, as linhas dominantes dos seus programas eleitorais – a soarem a mais do mesmo -, depressa foram abafados pelos ecos mediáticos resultantes do acórdão da Relação e da “invasão” da Madeira pelos agentes da Judiciária.

E, não obstante, Mariana Mortágua ter prometido um programa “aditivado”, com a ideia de “fazer o que nunca foi feito”, como suporte da utopia de “garantir uma vida boa a toda gente que vive em Portugal” e de Paulo Raimundo querer convencer os eleitores comunistas de que está apostado numa ruptura “com o trajecto que nos trouxe até aqui”, o certo é que estes eventos estiveram longe da projecção que ambos esperavam e de que precisavam.

E falta ainda conhecer, nesta estranha coreografia, onde política e Justiça ensaiam um “pas de deux”, o desfecho do inquérito relativo a António Costa ( instaurado no Supremo Tribunal de Justiça a 17 de Outubro, recorde-se …), sobre as suspeitas que recaíram no primeiro ministro demissionário e que precipitaram a queda do governo, a dissolução do parlamento e a promoção à liderança do PS de Pedro Nuno Santos, alguém que não estaria, seguramente, no rosário das suas “contas certas” para lhe suceder.

O protagonismo da Justiça, corroborado e amplificado pelos media, contrasta com as dificuldades de afirmação, experimentadas, designadamente, pelos novos líderes do PS, do Bloco, do PCP e dos liberais, empenhados em “mostrar serviço“ e ganharem robustez, antes das eleições antecipadas nos Açores e no continente (e quiçá na Madeira).

No meio deste torvelinho, enquanto Sócrates se mostrou desolado com a pesada derrota sofrida na Relação, o ainda primeiro ministro demissionário continuou a estugar o passo, avançando em projectos de fundo pouco consentâneos com a natureza de um governo de gestão, desde o TGV à reforma da função pública, e ainda lhe sobrou tempo para zurzir, “forte e feio”, numa jornalista do Público, que se atreveu a sugerir que ele  estaria  a aproveitar o contencioso entre a TAP e a ex-CEO  para atacar o seu sucessor Pedro Nuno Santos. Uma heresia…

A realidade, todavia, descontados os “fait-divers”, é que a política à portuguesa usa e abusa de dois pesos e duas medidas.

Quando rebentou o escândalo dos milhares de euros escondidos nas estantes de Vítor Escária, no seu gabinete em S. Bento, o PS não se poupou a malabarismos para resguardar António Costa dos efeitos dessa originalidade praticada à sua porta, por alguém da sua confiança. E pugnou, arduamente, pela continuidade do governo em funções, com uma solução de recurso, e o argumentário do costume, alegando os perigos de uma consulta eleitoral antecipada.

Porém, diante das suspeitas que recaíram sobre o presidente do governo regional da Madeira, o PS local e o nacional foram lestos a pedir a demissão de Miguel Albuquerque e a convocação de eleições antecipadas.

Em abono desta tese, os comentadores avençados, quase em uníssono, exigiram a Luís Montenegro que retirasse a confiança política a Albuquerque. Algo, que se saiba, ninguém exigiu ao PS e ao seu novo secretário geral.

Outro tanto em relação ao Presidente da República, criticado sem pudor pelos porta-vozes socialistas, que não se cansaram de lamentar a sua decisão de dissolver o parlamento.

Em contrapartida, os mesmos responsáveis foram céleres a exigir a Marcelo Rebelo de Sousa que tratasse de dissolver, quanto antes, a Assembleia Regional madeirense, mesmo sabendo que o Presidente estava impedido de o fazer nos próximos dois meses, como o próprio explicou.

O PS habituou-se a desempenhar, simultaneamente, o papel de governo e de oposição, enquanto professa uma curiosa tendência para “dar o dito por não dito”, com o mesmo fervor e à vontade.

Pedro Nuno Santos já interiorizou bem essa duplicidade. A prova disso observou-se na sua curta carreira de “comentador”, quando se   distanciava e criticava medidas do actual governo, embora depois as aprovasse como deputado. Agora promete o que rejeitou no governo, sem se dar por achado, como se ninguém tivesse memória daquilo que defendeu. Amnésias…

Sucede que os “timings” da Justiça também “atropelaram” as novidades na divulgação dos “cabeças de lista” dos principais partidos, com o “mercado das transferências” muito activo, em especial, à direita, devido às movimentações entre as fileiras do PSD e do Chega, este acusado de praticar “pesca à linha” em área social-democrata.

O ano eleitoral promete, com as regionais dos Açores (e, provavelmente, na Madeira), as Legislativas e as Europeias, enquanto a Justiça-espectáculo está bem e recomenda-se…

No último ano do mandato único (presume-se…), a actual PGR, Lucília Gago, não se pode queixar nem de tédio nem de falta de assunto. Os seus antecessores é que não compreendem a sua reserva. E o seu silêncio …