Como a maioria dos portugueses, não segui as cerimónias de comemoração do 25 de Abril na televisão. Não certamente por pertencer ao quinto dos portugueses que, segundo o Público da última terça-feira, têm saudades do anterior regime. Mas pelas exactas razões que expõe João Miguel Tavares num óptimo artigo (Corações ao alto: Abril regressou!) publicado no mesmo jornal, no mesmo dia. Não é agradável assistir ao espectáculo empolado da apropriação do regime por uma fatia significativa da esquerda cujos compromissos com a democracia são, em muitos casos, equívocos. A boa atitude é a de um passeante de Matosinhos que uma televisão interrogou sobre se iria comemorar efusivamente a data: “Não, a liberdade é todos os dias.” Desligarmo-nos das celebrações tem, além de tudo, a vantagem de nos livrar de ouvir o tipo de linguagem que William Saroyan chamava “festivo-fascista”, cheia daquele lirismo espúrio afectado de muita urgência que toma conta de vária gente na ocasião: “respirar Abril”, “cumprir Abril”, “dizer Abril”, “viver Abril” e coisas assim. Não é que a coisa, hoje em dia, me incomode muito, tenho mais em que pensar, mas sempre é melhor evitá-la.

O dia, de resto, foi ganho. E isso por causa de um pequeno livro de Eduardo Cintra Torres, Telenovela, Indústria e Cultura, Lda., recentemente publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Tinha-o lido há pouco tempo e veio-me à memória na data celebrada. O livro é um muito interessante e informado estudo acerca da produção das telenovelas, baseado na análise de uma telenovela particular: o Mar Salgado, que passou na SIC. Porque é que o livro me interessou, para além dos seus indiscutíveis méritos informativos, mostrando, entre outras coisas, o profissionalismo com que a telenovela foi feita? Pessoalmente, não vejo telenovelas há, pelo menos, trinta anos. Mas, há uns tempos já largos atrás, aconteceu-me algo que me levou, indirectamente, a elas e me fez prometer-me pensar um dia sobre o assunto. Vinha no metro do aeroporto para casa e à minha frente um casal de velhotes, com aspecto de camponeses, lia uma revista. Com uma seriedade imperturbável, comentavam os resumos de episódios de telenovelas como se lidassem com pessoas reais. Não é exagero nenhum meu. Era mesmo como se fossem pessoas reais. As emoções positivas ou negativas para com os personagens não podiam enganar.

Certas passagens do livro de Eduardo Cintra Torres lidam com este fenómeno, que põe problemas que, de certo modo, transcendem as questões próprias das telenovelas, ao mesmo tempo que explicam o seu sucesso junto do público: refiro-me às questões da verosimilhança, das emoções e da comunidade. São questões que se encontram já na Poética de Aristóteles. Por estranho que possa parecer, o que foi escrito para explicar os mecanismos da tragédia ateniense do século V antes de Cristo funciona, de certa maneira, para as telenovelas.

Comecemos pela verosimilhança. Tanto os criadores das telenovelas como os elementos do público que Eduardo Cintra Torres entrevistou dão-lhe grande importância. “São cenas da vida que podem acontecer. São cenas que acontecem na nossa vida, são verdades”, diz um espectador entrevistado no contexto do “grupo de foco”. As inverosimilhanças, os “exageros”, são no entanto aceites, se se conseguirem enquadrar no quadro geral da verosimilhança. Aristóteles explica isto. A tragédia deve fazer passar o herói do infortúnio à felicidade ou da felicidade ao infortúnio, através de acontecimentos que se sucedem segundo a verosimilhança ou a necessidade. Mas o inverosímil não é forçosamente excluído da tragédia. É verosímil que muitas coisas aconteçam contrariamente à verosimilhança. E o impossível que persuade é preferível ao possível que não persuade.

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As emoções, agora. Um actor entrevistado por Eduardo Cintra Torres declara que a novela “é um produto muito focado na nossa cara, na emoção”. No “grupo de foco”, uma espectadora diz preferir as novelas brasileiras, porque “nós somos mais fechados” e “não transmitimos tão bem as emoções”. Como nota o autor, “o género é, em grande medida, melodramático, apelando à exteriorização de sentimentos, em cenas emotivas ou muito emotivas”. Em Aristóteles, as emoções são fundamentais na tragédia, nomeadamente o medo e a compaixão. O espectador tem medo de se encontrar alguma vez na situação do personagem trágico, e, ao mesmo tempo, sente compaixão por aquele. As emoções são centrais, é claro, nas novelas. Numa das duas revistas que comprei a pensar nos meus velhotes do metro, a Maria, aparece, no fim de cada resumo dos episódios, uma secção intitulada “+ Emoções”. E, não surpreendentemente, os resumos falam, directa ou indirectamente, do medo (o medo com o que possa acontecer à criança vítima de uma doença rara, por exemplo) e sugerem compaixão. As doenças, o que faz medo por excelência, são, de resto, imprecindíveis nas telenovelas. Inês Gomes, a principal argumentista de Mar Salgado, entrevistada no livro, declara: “Em todas as novelas há uma doença”. “As doenças atraem audiências”, escreve Eduardo Cintra Torres. E se estivéssemos no lugar daquele personagem? Medo. Pobre dele. Compaixão.

As telenovelas criam comunidade, porque dão matéria para falar. São “pretexto para conversas, seja sobre o que se viu, seja sobre o que está para vir”. Há uma “apropriação da novela”, necessária “para não se correr o risco de ficar só ou em silêncio”. Diz uma espectadora: “Estamos a falar como se fossem pessoas da família: «Mas achas que o irmão…?»”. Aqui, obviamente, Aristóteles não nos pode vir em socorro. A estrutura antropológica do ateniense do século V a. C. não é a mesma do que a do homem democrático contemporâneo, habitado pelo medo (sempre o medo) da solidão. Resta que nos dois casos há uma função social que é cumprida: o estabelecimento de uma comunidade.

As novelas talvez não nos tornem mais virtuosos, como as tragédias, através da célebre catarse, eram supostas fazê-lo. Mas, à sua maneira, unem as pessoas de uma forma mais efectiva do que as solenes proclamações políticas quando, sob a capa da universalidade, visam de facto a imposição de um ideal sectário. É verdade que isso requer uma energia de crença, se me é permitido introduzir aqui uma inocente especulação metafísica, muito forte. Mas a verosimilhança e a passionalidade, as emoções, ajudam a estimulá-la. E talvez até seja sábio as pessoas canalisarem-na para aí. Porque a nossa energia de crença é limitada. Se fosse ilimitada, acreditávamos em tudo. E se as pessoas não acreditam em tudo, em três quartos das vezes é menos por particulares preocupações de coerência ou cepticismo reflectido do que por essa sua limitação da capacidade de acreditar. Tenho a certeza que os meus dois amigos do metro são mais felizes quase acreditando na existência real dos personagens das novelas do que se concentrassem a sua energia de crença nos discursos de vários falantes celebratórios. Se não mais felizes, pelo menos mais razoáveis.

Sobra um problema. Porque é que Catarina se sentiu fatalmente atraída por Nuno? Tanto mais que Nuno tem um carácter difícil e falha nos negócios emocionais, talvez em virtude da relação conflituosa com a mãe, que vive de toda a espécie de ilegalidades e lhe prefere o irmão Tiago e o despreza a ele, ao mesmo tempo que o utiliza para os seus fins. Com Jéssica, por causa destas razões, a coisa já correu mal. A atracção fatal deu-se porque, explica a revista Telenovelas, Catarina viu nele um “amante à altura”. Mas também porque – e Nuno igualmente o percebeu – juntos constituem “uma poderosa aliança”. “Os inimigos que se preparem!”. Será verdade? Para o saber é preciso ver o Coração d’Ouro. Mas por mim, antecipadamente, acho verosímil, emotivo – e já começo a acreditar. Com as necessárias dúvidas. Porque é que Nuno resistiu ao valoroso projecto de amorosamente acolher Jéssica nos seus braços? Vou investigar.