Quem quer que se sente na cadeira do poder num país desenvolvido e envelhecido sabe – ou devia saber – que se está a sentar em cima de duas bombas-relógio: o financiamento dos sistemas de saúde e segurança social. Qualquer destas áreas coloca problemas que só vão aumentar, e que aumentarão mais e mais depressa se esse país crescer pouco e estiver muito endividado. É o nosso caso.

Deixemos de lado a segurança social e entendamos uma realidade simples: basta o desenvolvimento da Medicina, a sua crescente sofisticação, para que tudo em saúde se torne mais dispendioso a cada ano que passa. Como a essa realidade se acrescenta uma população cada vez mais envelhecida, o dilema — terrível dilema — que muitos países começam a enfrentar é até onde se justifica levar os tratamentos mais dispendiosos quando estes já não garantem qualidade de vida.

Serve esta breve introdução apenas para sublinhar que boa parte da acalorada discussão ideológica a que temos vindo a assistir nos últimos meses entre o PS e o Bloco de Esquerda por causa das PPP, assim como os esforços de António Costa para demonstrar que vai finalmente fazer uma lei para salvar o SNS da direita tem muito de cortina de fumo. Ou é mesmo só poeira para olhos incautos. O que o Governo sabe, ou devia saber, é que enquanto se mantiver a actual arquitectura do sistema vai continuar a existir um problema de financiamento do SNS e inúmeros problemas de fixação dos seus profissionais mais competentes, tal como também sabe que não há dinheiro para “nacionalizar” – ou mesmo “sovietizar” – todo o sector, como por vezes se parece sugerir.

Daí este jogo de espelhos que importa desmontar – e denunciar.

A primeira encenação é que sempre houve uma radical divergência esquerda/direita em 40 anos de construção do SNS e está na hora de a resolver a favor da esquerda. “Não perder a oportunidade de avançar” foi mesmo o título que António Costa deu ao artigo que escreveu no Público para tentar convencer a esquerda que podia engolir uma pequena dose de PPP só para ter uma lei mais à sua medida. O seu argumento central, já repetido em vários debates parlamentares, é que esquerda e direita sempre votaram às avessas as leis fundamentais do sistema de saúde: PSD e CDS estiveram contra a lei Arnaut de 1979, o PS esteve contra a actual Lei de Bases aprovada em 1990 por uma maioria PSD. É verdade, mas na substância é irrelevante.

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A primeira lei “de esquerda” esteve em vigor 11 anos durante os quais a direita esteve 9 no poder, aplicando-a e com sucesso (só um indicador, por curiosidade: na década de 1980 a mortalidade infantil caiu mais de 50%, de 24,3 por mil, para 10,9). O que significa que o SNS de Arnaut começou a ser construído por governos de direita.

Depois entrou em vigor a actual lei, que Costa agora tanto critica, e que permitiu consolidar o SNS durante mais 29 anos, sendo que desse período o PS foi governo mais de 16 anos. Ou seja, durante 16 anos a “lei de direita” não o incomodou muito nem o impediu de se afirmar “campeão do SNS”.

Estamos pois perante uma falácia, eu diria mesmo uma mistificação: podendo a letra destas duas leis ser mais ou menos do agrado dos governos de turno, elas nunca impediram que tanto os governos do PS, como os governos do PSD ou do PSD e CDS construíssem em conjunto o SNS. As leis tinham suficiente latitude para opções que umas vezes foram mais liberais, outras vezes mais estatistas, mas isso é precisamente o que se espera de uma Lei de Bases: que dê estabilidade ao sistema sem tirar liberdade a diferente opções políticas.

Dito isto importa desfazer dois mitos. O primeiro é que a “joia da democracia”, o nosso SNS, é o melhor do mundo. É verdade que, em muitos aspectos, ele apresenta excelentes indicadores (a mortalidade infantil é um deles, e quem quer que tenha estudado a sua evolução sabe o muito que nessa frente se deve a Albino Aroso, que até nunca foi ministro, só foi secretário de Estado, e não num governo do PS, mas num do PSD), mas um balanço mais sistemático mostra-nos que há quem faça bem melhor.

O segundo mito é que o tipo de organização dos serviços públicos de saúde que temos, em que o Estado é fornecedor dos cuidados, proprietário das infraestruturas e arca com as despesas, corresponde ao único modelo e possível de “Estado Social” europeu. Também não é assim. No essencial o nosso modelo foi decalcado do britânico, mas é muito diferente do francês, do alemão ou do belga, só para dar três exemplos. Há países onde o modelo é o de um seguro público, suportado pelo Estado, mas com os utentes a terem a liberdade de escolha que têm, por exemplo, os utentes da ADSE.

Fecho este parênteses pois não quero abrir novas frentes de debate pois importa passar ao segundo jogo de espelhos. E esse é a fixação do Bloco de Esquerda (mas também do PCP) no tema das PPP. É uma campanha que parte de um preconceito (as PPP têm mau nome na praça por causa do que se passou no sector rodoviário), elabora em cima de uma mentira, pois dá a entender que o dinheiro pago aos hospitais PPP (€2000 milhões por legislatura, nas contas do eterno Francisco Louçã) não teria de ser gasto na mesma se esses hospitais fossem geridos pelo Estado, e é incapaz de esconder o sonho totalitário de nacionalizar todo o sector. Basta ler o que se propunha na Base I da famosa lei Semedo/Arnaut, e cito: “A administração, gestão e financiamento das instituições, estabelecimentos, serviços e unidades prestadoras de cuidados de saúde é exclusivamente pública, não podendo sob qualquer forma ser entregue a entidades privadas ou sociais, com ou sem fins lucrativos”.

Tomar à letra esta premissa seria demencial e Louçã, que sabe fazer contas, não o ignora. Mas omite-o. De facto 42% do sistema de saúde português é assegurado pelos sectores privado e social, o que significa que (números de 2017) de uma despesa total em saúde de 17,3 mil milhões de euros, o Estado só suportou 9,9 mil milhões de euros. Propõe-se Louçã cobrar mais 8,4 mil milhões de euros em impostos para ser o Estado a pagar tudo? Claro que não. Mas isso não impede o BE de espalhar cartazes a dizer que a saúde não pode ser um negócio, o mesmo é dizer que não deve haver sector privado de saúde. Se isto não é populismo não sei o que é populismo.

Quanto às PPP a fixação do Bloco também não tem qualquer sustentação na realidade dos factos e dos números, e não vou repetir argumentos sobre os bons resultados clínicos e económicos dos hospitais assim geridos, que são um bom negócio para o Estado e prestam bons serviços aos utentes, por regra em melhores condições que hospitais equivalentes do SNS (quem quiser pode encontrar aqui e aqui os argumentos que troquei com um deputado do Bloco, mas sobretudo deve ler este artigo do antigo secretário de Estado da Saúde do PS Óscar Gaspar, hoje presidente da Associação de Hospitalização Privada).

Para além disso centrar em quatro unidades do nosso sistema de saúde todo o debate é procurar distrair as pessoas do essencial. Nem chega a ter dignidade como polémica ideológica, só é sinal – triste sinal – de que em Portugal ainda é trunfo político atacar a iniciativa privada e demonizar o lucro, mesmo quando aqueles que o demonizam não dispensam, privadamente, os serviços da medicina… privada.

E isto porquê? Porque com este jogo de espelhos se evita falar dos investimentos que não se fazem, dos hospitais que se prometem e não aparecem (só o novo Hospital de Évora já foi anunciado sete vezes por este governo e ainda nada aconteceu), tal como se evita discutir o futuro. Sobretudo não se fala do que dói. E há números e factos que doem como murros no estômago, como alguns apontados num recente e demolidor artigo de – vejam lá – um ex-ministro socialista, Correia de Campos. Por exemplo:

  • Entre 2006 e 2016, o número de leitos privados subiu de um quarto para um terço dos leitos totais, enquanto os hospitais públicos reduziam em 13% a sua lotação.
  • Nas consultas externas, o setor privado passou de um quinto para um terço do total do País. Nas urgências duplicou a produção enquanto o setor público aumentou este último desempenho em apenas 28%.
  • 27% de todas as cirurgias são hoje realizadas no setor privado. 
  • A redução de horários na função pública, em vez de ter sido acompanhada de incentivos à produtividade, atuou como catalisador de ineficiências e de conflitualidade laboral.
  • A deterioração do SNS impulsionou o privado a atrair clientes da classe média e alta que antes frequentavam o SNS. Deste modo, o SNS, em vez de refúgio para todos, passou a ser um serviço para os mais pobres.

Estas palavras não foram escritas por um perigoso direitista – são antes a análise lúcida de um socialista que não embarca nas manobras de diversão a que se entregou uma direcção do PS falha de convicções e um Bloco prenhe de oportunismo.

No fim talvez continuemos com a mesma lei de bases do SNS, que podia ser melhorada se não tivesse sido transformada numa arma de arremesso político. O que talvez acabe por ser um mal menos.

Mau, mau, é estarmos a perder a pouco e pouco o SNS porque aqueles que mais enchem a boca com ele são os que não compreendem como os sistemas de saúde mudaram e tudo tem de ser pensado de forma diferente. Preferencialmente sem ser ao som do hino da Intersindical.