O ingresso do fenómeno populista em Portugal despertou meias consciências. O regime está – e bem – preocupado com a questão moral que envolve ter um líder partidário e candidato presidencial a querer deportar adversários políticos, confinar etnias e censurar redes sociais. A irresponsabilidade destas mensagens e deste modo de estar na vida pública tem provocado, felizmente, repulsa na maioria dos quadrantes. Mas repudiar propostas, tanto as desumanas como as estapafúrdias, não é suficiente para derrotar – ou sequer combater – André Ventura. As razões da sua popularidade são muito mais profundas do que a adesão e o burburinho de uns posts no Facebook e de umas já previsíveis polémicas. A insatisfação que Ventura capitaliza está para lá disso, é mais real do que isso e não deve ser menosprezada. Se o regime deseja vencer o Chega como movimento anti-sistema, o regime tem de mostrar ao país que os ataques que o Chega lhe dirige são infundados.

Ora, esta semana, foi exatamente o oposto disso que o regime fez. Falo, para que fique claro, do caso de António Costa Silva. Tristemente, o episódio é muito português, particularmente simbólico do tempo que estamos a viver e conta-se com facilidade. Começou no sábado, com uma manchete do semanário Expresso, que dizia: “Costa chama independente para ‘salvar’ a economia’. Em baixo, lia-se que o gestor da petrolífera Partex já está “a negociar o plano de retoma com ministros” e que iria “falar com partidos e parceiros sociais” em nome do governo para preparar o próximo Orçamento do Estado. No interior do jornal, o país era informado sobre este académico e gestor, sem experiência política ou de governação, que anda a “negociar com ministros” mandatado para definir “programas que estão previstos e que devem cair, ficar ou nascer”. Os poucos que sabiam chamaram-lhe “o para-ministro” e este, dizem-nos, vai “condicionar toda a governação dos próximos anos”. Costa Silva já teria “entregado ao primeiro-ministro o que este espera ser uma visão da nova economia do país” para o próximo Orçamento e “seguramente também dos anos seguintes”. Durante a semana, viríamos a descobrir que a “visão” para o nosso futuro coletivo foi escrita em dois dias.

A preocupação do governo, lendo a peça, foi a de garantir que o currículo e a posição de Costa Silva como gestor de uma petrolífera não seriam “incompatíveis com a agenda de combate às alterações climáticas” – um pormenor de ir às lágrimas, como se um gestor do setor privado empregado por uma empresa pública tailandesa não reunisse incompatibilidades suficientes por si só. O dito “para-ministro” viria, 24 horas depois, recusar a possibilidade de integrar o governo de Costa, escapando assim a qualquer escrutínio democrático ou parlamentar, e assegurar que continuará na sua empresa, não suspendendo funções. Os jornalistas, contudo, aplicaram-se. Macron “pediu isso a um grupo de economistas”, exemplificavam com propriedade.

Ao longo da semana, veiculou-se também o nome de António Borges, em tom de comparação e escusa, como se o falecido consultor do governo de Pedro Passos Coelho houvesse exercido responsabilidades de decisão estratégica ou política semelhantes às que António Costa entregou a António Costa Silva. Factualmente, um está nos antípodas do outro: Costa Silva coordenará áreas e prioridades ministeriais, representando politicamente o primeiro-ministro, enquanto a assessoria de Borges era coordenada pelos ministros que representavam politicamente o governo – e não pela arbitrária vontade do próprio. A ação e o rumo do executivo PSD/CDS estavam, como se espera em democracia, nas mãos do então primeiro-ministro e dos demais membros do governo.

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De resto, a apologia mediática do gestor da Partex foi crescendo em comoção. As “opiniões pinceladas de poesia, romances e contos” – a tocante garantia de que “não se define politicamente se mais à esquerda se de direita”, o conveniente clichê de preferir “mais políticas sociais do que finanças para que o mundo não seja só números”, a confusa ideia de que Portugal “não pode ficar longe da Rota da Seda da China” mas que o nosso espaço económico deve ser “mais autónomo face a outras economias, a China, por exemplo”, – seguidas por densas imersões biográficas, pelotões de fuzilamento em África, uma juventude na extrema-esquerda, o aplauso dos escritórios de advocacia, que o estimam, e longas entrevistas de panorâmica perspetiva, cujo meu título favorito foi de desarmante honestidade: “O povo português é absolutamente extraordinário nas crises e medíocre no regresso à normalidade”. Meu caro amigo, o PS que o diga.

Sem ter nada contra a personalidade, o seu voluntarismo ou o seu percurso, sou forçado a ironizar: se passasse pela cabeça de um primeiro-ministro da direita entregar a recuperação económica do país a um gestor, o título seria algo como “Governo delega próximo OE no privado”; como se trata de um governo socialista, brinda-se a nação com “Costa chama independente para ‘salvar’ a economia”. Não posso, desculpem-me, ignorar o facto de jornalistas de vasta experiência e rede divulgarem a existência política de Costa Silva esquecendo-se, coincidentemente, de perguntar aos ministros se acham bem serem ministeriados por um “para-ministro”, aos partidos se aceitam negociar com ele (BE e PSD lá declararam a óbvia rejeição), aos parceiros sociais se reuniriam com um gestor petrolífero e a si próprios se um homem da Partex deve “condicionar toda a governação dos próximos anos” sem deveres institucionais perante o parlamento.

Torna-se, dado o descaramento ou o descuido, bastante ingrato defender o papel da imprensa num regime democrático quando ela se curva sistematicamente aos poderes do regime que devia contrabalançar. Acrítica e obediente, deixou de questionar e passou a comunicar, parou de analisar e resignou-se a narrar. O modo como tentou normalizar – e até abrilhantar – o recrutamento de Costa Silva diz muito do que é o jornalismo de hoje em Portugal. Descredibiliza-se e insulta-se a classe política, como se esta não estivesse habilitada a levantar o país de uma crise e fosse necessário convocar um providencial CEO para a empreitada. Desvaloriza-se a informalidade do convite, promovendo-se inconscientemente a falta de transparência, quando o propósito da comunicação social é justamente o contrário: responsabilização. Se olharmos para os últimos meses, reparamos como se foram criando exceções deste género para tudo – comemorações, concertos, regras e cargos –, enchendo assim a boca àqueles que lucram com um eleitorado cansado de viver debaixo de excecionalidades tão indevidas quanto incompreensíveis. Querem mesmo parar Ventura? Comecem por aqui.

P.S. – Terça-feira, o bispo do Porto manifestou-se publicamente contra a alteração da lei da nacionalidade para descendentes de judeus sefarditas, num notável gesto de ecumenismo e solidariedade. Quarta-feira, o primeiro-ministro do Reino Unido anunciou a abertura de um caminho para a cidadania britânica a mais de 3 milhões de cidadãos de Hong Kong. Com o mundo do avesso, são posições que merecem especial reconhecimento.