Já que não consigo concretizar todos os livros que gostava de escrever, alguns tento que, pelo menos, cheguem a ser textos. É o caso deste. Há uns anos, numa semana de Verão no litoral alentejano, cruzei-me com um fenómeno que quis documentar. Faltou-me o tempo e o talento, é certo, mas ficou claro para mim o empreendimento colectivo de férias de fornicação que os miúdos endinheirados de Lisboa ali desenvolviam. Sem pais, sem travões e provavelmente sem grandes limites de multibanco, aquela juventude dava corpo ao que lhe apetecesse.

Era Setembro de 2015 e escrevi assim: “tenho em mente um novo livro para escrever. Chamar-se-á “Férias de Fornicação—a razão porque o lazer dos adolescentes mostra a decadência da nossa cultura”. Já tenho a teoria essencial plasmada na minha cabeça, resultado de ver a Costa Vicentina inundada de teenagers betinhos, saídos dos seus colégios católicos, conduzindo os bólides dos papás para se deitarem com quem lhes apeteça. O nosso maior problema não é a esquerda defender valores anti-cristãos. O nosso maior problema é a demografia da suposta direita conservadora viver de um modo requintadamente pagão.” Passaram quase sete anos e continuo a concordar com o que anotei na altura.

Dar corpo ao que nos apetece é, em grande parte, aquilo que significa fornicar. Infelizmente fomos perdendo a nossa familiaridade com o termo e, assim, também uma oportunidade de voos morais mais altos. É interessante que há dicionários onde a definição de fornicação é “ter relações sexuais”, mas essa é incompleta. Por exemplo, na Bíblia, onde a palavra muito aparece, fornicação é toda a relação sexual que acontece fora do casamento. Fornicar é, neste sentido, dar corpo ao que me apetece além da promessa matrimonial que tenha feito (ou ainda vá fazer). Fornicar é a grande liberdade de me comportar para lá das fronteiras da minha palavra. Fornicar é furar o que falei.

Quando a miudagem copula à vontade, naturalmente não pensa nisto. Pensa pôr a liberdade a render mas o que está em causa é rejeitar uma inteireza que só se descobre quando o corpo é o mapa da nossa dedicação a alguém—é o paradoxo de só saber quem sou quando não sou só meu. A fornicação, parecendo o muito que fazemos com o nosso corpo, é a desmaterialização dele em encaixes imediatos que não se prolongam no tempo. Sendo tudo acerca da carne, a fornicação é impedirmos que ela se relacione com a palavra. Para quem, como os cristãos, acredita que o Universo começa com o verbo, com o “faça-se”, já está a ver onde se chega: fornicar é um fazer que, na ausência da palavra, nos fantasmiza.

A virilidade da rapaziada na Costa Vicentina torna-se, ironicamente, um vazio. O fornicador soma gente ao seu corpo para que no fim tudo suma—somar fica mesmo sumir. Faz lembrar quando no “Regresso ao Futuro” a família do Marty McFly se evapora progressivamente na fotografia e ele tem de dar tudo por tudo para que o futuro se aguente. Talvez injecte demasiado existencialismo num retrato pop mas é também este o desmoronamento que sucede aos Verões sensuais que observei—excitam muito na estação quente mas depois exibirão uma frente fria.

Mencken dizia com graça que o puritanismo era o pânico de que alguém, algures, possa ser feliz. Eu, que tento ser o puritano mais assumido que consigo (no sentido religioso e histórico do termo), não posso deixar de admitir que ainda estou por descobrir um fornicador feliz. Aliás, devo ir mais longe e assumir melhor a minha inexperiência total nesta matéria: por um lado, nunca forniquei; e por outro, não tenho uma fé assim tão grande na felicidade. E é aqui que muitos cínicos, como Mencken era, acabam contraditoriamente a professar a religião que sustenta estas férias alentejanas e muitas outras: crendo que a felicidade, para ser factual, precisa de ser muito fornicada.

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