O novo PS tem um novo inimigo: Marcelo Rebelo de Sousa. A estratégia no Congresso ficou clara: responsabilizar o Presidente da República pelas eleições antecipadas e sugerir que tem um plano escondido para levar a direita ao poder. O ataque concertado dos socialistas tem o objetivo de condicionar ao máximo o chefe de Estado quando tiver de tomar decisões após 10 de março.

Qualquer ato do Presidente pode dar um empurrão ou, ao invés, ser fatal para Pedro Nuno Santos ou Luís Montenegro. Preferir dar posse a um governo minoritário, só dar posse a um executivo com apoio maioritário no Parlamento ou, por exemplo, exigir um acordo escrito são potenciais imposições presidenciais que podem — mesmo dentro dos poderes constitucionais — desequilibrar a balança.

O problema do PS é que Marcelo Rebelo de Sousa não é só o suspenso militante número três do PSD. O Presidente da República é também — de todos os protagonistas com poder decisório após as eleições — o maior aliado do Chega no processo de normalização do partido. Luís Montenegro não quer nenhum acordo com o Chega. Nuno Melo, idem. Já Marcelo não tem qualquer problema em que o Chega faça parte de uma solução governativa.

E não são apenas sinais, são garantias públicas. O Presidente, sempre adiantado nos cálculos políticos, começou a dizê-lo quando ainda estava em campanha para um segundo mandato. Em dezembro de 2020, antes de ser reeleito com 60,7% dos votos (com o apoio não assumido, mas implícito do PS de Costa), Marcelo avisou em entrevista à SIC Notícias: “Chega-me a proposta de formação de um Governo com maioria parlamentar, em que um determinado partido dá apoio parlamentar, não vejo razão constitucional para dizer a esse partido que não pode”.

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A interpretação constitucional de Marcelo está longe de ser única ou exclusiva de personalidades da direita. Isabel Moreira, também especialista em Direito Constitucional e insuspeita de simpatizar com o Chega, é da mesma opinião jurídica de que o Presidente jamais se podia substituir ao Tribunal Constitucional e não dar posse a um partido como o Chega.

Já em setembro de 2023 um jovem emigrante militante do Chega confrontou o Presidente no Canadá com a seguinte questão: “Porque é que você tem medo de o Chega ir para o Governo? É por isso que você não faz nada?”. Marcelo Rebelo de Sousa respondeu de imediato que “os portugueses decidem o que querem para o Governo e, portanto, se decidirem A é A, se for B é B”. Ou seja: se o Chega for o A ou B dos portugueses para Marcelo está tudo bem.

Menos de dois meses depois, em novembro, foi o próprio André Ventura a dar conta de uma garantia do Presidente, que este nunca desmentiu publicamente: “Foi satisfatório [perceber] que o Presidente da República não será obstáculo a qualquer tipo de participação governamental por parte do Chega e de que não será o Presidente da República um obstáculo à construção de um governo se os partidos quiserem”.

Na última mensagem de Ano Novo, já em 2024, o Presidente da República voltou a deixar bem claro que, para ele, não existem linhas vermelhas — nem à esquerda, nem à direita. “O povo é quem mais ordena” ou “2024 irá ser, largamente, aquilo que os votantes, em democracia, quiserem” quer dizer isso mesmo: Marcelo permitirá formar Governo quem tiver votos para isso, seja qual for a matriz ideológica.

Marcelo preferiria até, na salvaguarda da sua popularidade e legado, que a nova AD conseguisse a maioria parlamentar em conjunto com a Iniciativa Liberal. Mas o seu lado de constitucionalista não lhe permitiria outra opção senão aceitar um governo que venha a ter o apoio parlamentar do Chega. Para o Presidente da República não há linhas vermelhas. Ora, se para a primeira figura da Nação o partido de André Ventura faz parte do arco da governação, a discussão sobre a normalização do Chega torna-se irrelevante. Marcelo já mais que o normalizou. Deu-lhe legitimidade de governação.

No dia do arranque do Congresso do PS, Marcelo voltou a falar, no festival de podcasts do Expresso, sobre a direita radical, mas até fez uma distinção entre a “soft” e a “hard“. O Chega encaixa, porém, no critério “soft” definido por Marcelo. Mais do que isso: o Presidente diz que a direita radical é um problema da direita, mas também da esquerda. Só não é um problema dele. A ele, Marcelo, só lhe compete olhar resultados eleitorais.

Astuto, André Ventura já percebeu que não tem um obstáculo em Belém. Depois de anos a criticar o Presidente da República, o líder do Chega elogiou o discurso de Ano Novo de Marcelo. Mesmo o arremesso político do caso das gémeas, que Ventura não larga, foi redirecionado para o Governo, enquanto em meados de dezembro as exigências também eram feitas ao chefe de Estado.

Ventura, que dentro de quatro dias protagoniza mais um Congresso ‘patrocinado’ pelo Tribunal Constitucional, só tem um último grande obstáculo a integrar uma solução de Governo se a direita tiver votos para isso: a coerência de Luís Montenegro.