Marcelo Rebelo de Sousa esteve no Brasil para a sessão comemorativa do centenário da travessia aérea do Atlântico Sul. No mesmo dia, participou na abertura da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. E, se esses foram os motivos que o levaram ao Brasil, o Presidente da República recheou a sua agenda com vários encontros, nomeadamente com antigos Presidentes do Brasil — Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e Lula da Silva. Primeiro problema: Lula da Silva será candidato às próximas eleições presidenciais brasileiras (em Outubro), contra o actual Presidente do Brasil, pelo que o encontro com Marcelo foi por alguns interpretado como uma interferência no curso da campanha (informalmente em curso). Segundo problema: um dos que interpretou deste modo foi, precisamente, o Presidente Jair Bolsonaro, que havia convidado Marcelo para um almoço e que, sabendo do encontro com Lula da Silva, o desconvidou.

Numa circunstância normal, este episódio constituiria um incidente diplomático preocupante. Seja porque desencadeou mal-estar entre as maiores figuras dos Estados português e brasileiro, que deveriam preservar uma relação privilegiada. Seja porque esse mal-estar se deveu a um encontro que as boas práticas diplomáticas recomendariam evitar: na medida em que Lula da Silva já anda em campanha e será formalmente candidato presidencial a partir de Agosto, o encontro com Marcelo sujeita-se a interpretações políticas (e, aí, difere dos encontros com Temer e Henrique Cardoso, ambos retirados da política activa). Jair Bolsonaro pode ser um presidente medíocre, um populista e uma figura política menor. Mas Jair Bolsonaro, com toda a legitimidade democrática, é Presidente do Brasil. E, neste episódio de colisão diplomática entre Portugal e Brasil, foi Marcelo Rebelo de Sousa o principal responsável pelo desconforto que se instalou. Não haja dúvidas: Marcelo errou ao encontrar-se com Lula da Silva — já agora, também ele um político pouco recomendável, cujo espectro de corrupção aconselharia distanciamento, em vez de camaradagem.

Se tal não bastasse, Marcelo fez questão de carregar na ferida: nas entrelinhas das suas declarações à imprensa, sugeriu que o desentendimento com o Presidente do Brasil tornou indirectamente a sua presença em solo brasileiro ainda mais bem-sucedida, numa perspectiva de médio e longo prazo. Nas suas palavras: por causa da polémica que se instalou, “Portugal passou a ser tema” [no Brasil], porque “a visita do Presidente foi tão coberta pela comunicação social brasileira“. E completou: “nunca tive tantas selfies de brasileiros, no Brasil, como agora“. Para bom entendedor, a mensagem ficou clara: Marcelo considera que o desagrado de Jair Bolsonaro o tornou mais popular junto do povo brasileiro. E abriu portas à interpretação: a médio e a longo prazo (por exemplo, no pós-eleições), isso será bom para ele e, quem sabe, para as relações de Portugal com o Brasil (se, porventura, Bolsonaro não for reeleito).

Estas tomadas de posição têm obviamente duas leituras inquietantes sobre a actuação do Presidente da República. A primeira é que, em vez de adoptar uma postura institucional e sóbria, tudo o que Marcelo fez estes dias no Brasil legitimam interpretações políticas de preferência por Lula da Silva nas eleições presidenciais brasileiras de Outubro de 2022. A segunda é que Marcelo Rebelo de Sousa é viciado em índices de aceitação popular, avaliando as suas decisões políticas através de um marcelfie-tómetro — quantos mais cumprimentos e pedidos de selfies receber dos transeuntes, mais Marcelo se convence que decidiu bem. Ou seja, para Marcelo, a popularidade comanda a acção política (e basta lembrar como justificou ao Expresso recentemente o seu apoio ao governo de António Costa). Se quiséssemos ser severos, diríamos que Marcelo é o maior populista da política portuguesa. Se optarmos pela benevolência, temos no mínimo de reconhecer isto: Portugal merecia que o seu Presidente da República tivesse um padrão de sucesso mais exigente do que o número de selfies que tira nas ruas.

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