A recente notícia da demissão de 87 médicos no Centro Hospitalar de Setúbal E.P.E. reverberou nos media, nos meios políticos e, assim se espera, na população e no eleitorado. É certo que esta “demissão” mais não foi do que uma manifestação para chamar a atenção do público para os problemas que não são só de um hospital em Setúbal. Esta demissão não correspondeu a uma exoneração da função pública de 87 médicos que continuarão, na sua maioria, a fazer o que sempre fizeram, a tratar doentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Esta “demissão” foi a afirmação de que os médicos em causa consideraram que não existiam condições para continuarem a exercer as funções de responsabilidade para que tinham sido investidos. Não é coisa pouca. Para o hospital, na verdade, pouco sucede, já que as funções continuarão a ser exercidas pelos demissionários até que se encontre um substituto. Para os utentes, o elevado sentido ético dos médicos poupá-los-á a transtornos. Fica a vergonha do governo, se ainda a tiverem, da confrontação pública com as falhas estruturais crescentes de um SNS que perde qualidade a cada dia. Não deveria ser coisa pouca.

O governo respondeu como responde habitualmente. Anuncia que vai financiar obras que nunca mais acontecerão e que autoriza ou já autorizou a contratação de pessoal. Omitem que essa “autorização” do ministério da saúde estará dependente do crivo do ministério das finanças, onde as contratações esperam meses a anos – anos não é figura de estilo – até poderem ser efetivadas, mesmo quando há interessados e pessoas concretas a contratar. Os hospitais “empresa”, ditos EPE, são tão pouco autónomos como todas as restantes estruturas do setor público administrativo (SPA). Também, de que lhes serviria ser mais autónomos se o financiamento não é suficiente para as necessidades?

E também esquecem que o problema maior está, em primeiro lugar, na falta de candidatos habilitados, porque em Portugal há falta de médicos e de especialistas médicos, digam o que disserem os interessados em manter a escassez de médicos. Mas, em segundo lugar, há ausência de interesse dos médicos em serem trabalhadores do SNS. Basta ver os concursos que ficam desertos, mesmo quando abertos à medida de especialistas acabados de formar. E, note-se, a falta de médicos é tão evidente em algumas especialidades que até em regime privado já se espera mais de seis meses para conseguir uma consulta, ainda mais se for por via de uma convenção, com especial destaque para a ADSE.

Ora, este busílis da incapacidade que o Estado vai tendo para contratar enfermeiros, técnicos superiores de saúde e também médicos, radica numa questão primordial muito simples. Os salários são demasiado baixos. No caso da falta de médicos, acresce que pagamos a fatura de anos a fio de numerus clausus ridiculamente baixos sem que se olhasse para a inevitável aposentação dos licenciados na pletora formativa da primeira metade dos anos 70 do século XX. Mas nem a falta de profissionais levou o Estado a seguir os princípios normais da oferta e procura e só paga mais, exorbitantemente mais, em utilizações avulsas, à hora, à tarefa, sem cuidar da fixação de quadros.

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Note-se que toda a lógica de incremento remuneratório no SNS tem estado baseada em horas “extraordinárias”, com a estupidez de que delas resulta a perda de prestação de horas “normais”, e em incentivos errados, como os da cirurgia (SIGIC), que estimulam a diminuição da produção normal.

Há outros erros que são agora evidentes. O mais evidente foi a desproporção assumida entre salários dos médicos das Unidades de Saúde Familiar (USF) tipo B, as que pagam incentivos, e o regime geral de todos os outros especialistas de cuidados primários, saúde pública e hospitalares. As USF são melhores em vários parâmetros, mas são caras e muito ineficientes quando analisamos custo vs resultados em saúde. O pior foi que a sua existência, ainda hoje racionada pelo facto de serem muito dispendiosas, levou a concorrência interna dentro dos cuidados primários, despovoando de recursos zonas territorialmente limítrofes, com o agravamento de que para pertencer a uma USF tem de haver convite dos que já lá estão, numa lógica de proteção do “bolo” que não se compraz com as necessidades assistenciais de uma País inteiro. De tudo isto, já que os médicos de outras especialidades, nomeadamente as hospitalares, nunca foram bonificados, resultou uma injustiça que perdura. Digamos que a injustiça é tão escabrosa quanto a aposta nos cuidados primários falhou num dos seus principais objetivos que era a diminuição de procura de cuidados hospitalares, em especial de serviços de urgência. Eis um tema para ser pensado e resolvido.

Todavia, o modelo de pagamento das USF, passível de ser aperfeiçoado se tivesse sido calibrado melhor para resultados (tarefa difícil como mencionarei mais à frente), introduziu alguns aspetos interessantes e que deveriam ser corretamente analisados, de que destaco o maior salário base e a melhoria das instalações, que ainda justificarão o apetite dos profissionais por este modelo de organização assistencial que tem futuro ameaçado. Ou seja, mais do que ter aumentado apenas os salários dos profissionais das USF, dever-se-ia ter melhorado a remuneração de todos os profissionais de saúde do SNS e produzido melhorias estruturais em todo o aparelho público de prestação de cuidados de saúde.

Da má qualidade do SNS, essencialmente em termos de espera pelo acesso, resultou a expansão de um setor privado que, como já vimos, não resolve o mais importante dos problemas de saúde que é a diminuição global dos tempos de espera por consultas. Mas é eficiente, comparativamente com o Estado, no acesso a meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT). Ora, o Estado não se serve consequentemente de esta oferta de disponibilidade de MCDT, com especial destaque para a obtusa mania de internalizarem tudo, incluindo serviços de diagnóstico de imagem e endoscopias, exatamente o que o SNS não consegue fazer em tempo clinicamente útil. Noutro texto voltarei ao erro que se prepara com a construção de megacentros de saúde, incorporando capacidade de diagnóstico laboratorial e de imagem, como o PRR prevê, para que o Prof. Correia de Campos, sabiamente, já alertou.

Voltemos aos problemas de Setúbal que são os do nosso SNS. Faltam médicos. São poucos e não querem trabalhar no SNS. O que fazer quando há Colegas que abandonam o SNS para irem ganhar 10 vezes mais num hospital privado?

Uma coisa é certa, não vale a pena acenar-lhes com a possibilidade de fazer investigação. Para lá do absurdo de encarar a possibilidade de fazer “investigação” como um perk, a que nenhum governo resiste, essa “possibilidade” deveria ser uma parte integrante da prática médica de qualidade. Além do mais, a promessa de condições para fazer mais investigação, nomeadamente clínica, não tem sido possível de cumprir. Para fazer mais e melhor investigação clínica ou laboratorial é preciso tempo, coisa que os médicos não têm porque são poucos ou porque têm de se despachar para irem ganhar a vida noutro sítio. E também faltam apoios de pessoal, incluindo enfermeiras e coordenadores de investigação, que os hospitais não podem contratar…porque não há dinheiro. Já sei o que vão pensar uns quantos “investigadores” de sucesso. Usem as verbas ganhas com os programas de investigação pagos pela indústria farmacêutica para financiarem a investigação que serve os interesses da indústria farmacêutica. Sabem que mais? Bollocks! E mais não digo.

Mas a verdade, simples, é que não há como ultrapassar incentivos de caráter externo de que os salários são os mais eficazes, se queremos contratar e reter – sublinho “reter” – pessoal no SNS. Para início de conversa, há salários que simplesmente teriam de ser dobrados, isso mesmo, duplicados para poderem ser aliciantes. É que o sistema fiscal progressivo, fortemente progressivo, logo a partir de salários baixos a isso obriga. Em Portugal há uma metade, supostamente rica, que paga os impostos devidos pelos rendimentos de todos. E isto acontece também porque a metade que não paga IRS ganha tão pouco que se o pagasse na mesma proporção, não teria de que viver.

Vejamos algumas sugestões de medidas de melhoria salarial, apenas a título de exemplo:

  • Incremento salarial garantido ao fim de um determinado número de anos de serviço consecutivos cumpridos. Só assim se fixam as pessoas. Foi um disparate terem acabado com as velhinhas diuturnidades do Estado Novo. Percebeu-se a intenção de introduzir um racional de mérito nas progressões, mas a consequência foi de que não há progressões, os salários dos mais experientes desvaloriza-se, não acompanha o aumento de responsabilidade e as pessoas que podem fazer a diferença e até ensinar, são os que partem mais depressa.
  • Por exemplo, complementarmente, poderia haver bónus extra, pago de uma só vez, cada vez que fossem cumpridos 5 anos ininterruptos de serviço, sendo que o bónus aumentaria um pouco mais por cada 5 anos. Mas, se o trabalhador saísse antes de cumpridos 5 anos consecutivos de trabalho no SNS, teria de devolver o último bónus de permanência + 5 meses de salário. Com, além disto, um prémio de assinatura pago no primeiro mês, sujeito a devolução se não fossem cumpridos 5 ou 10 anos de trabalho no SNS.
  • Mais dias de férias. Garantir 25 dias + 15 dias para formação ou, se o trabalhador preferir, 30 + 10 para formação. Os dias de férias, acima dos 22, poderiam ser convertidos em salário se não fossem gozados, em vez de acumulados anualmente. Há trabalhos na saúde que justificam atribuição de mais dias de férias. Em alternativa, poder-se-ia repor o aumento de 1 dia de férias por cada 10 de serviço + 1 dias de férias por cada década de idade acima dos 30 e não 40.

Claro que há quem acredite que a dedicação plena ou exclusividade viria resolver o problema. Não será já assim. Em primeiro lugar, nunca poderá ser obrigatória – então é que iam todos embora – e, em segundo lugar, teria de ser muito compensadora, nunca com acréscimos de 40% de salário como tem sido tentado sem sucesso. Os médicos cumprem o seu horário e se não querem mais horas de contrato no SNS é porque vão para onde lhes pagam melhor. O problema já não é trabalharem só no SNS, é não terem vontade de trabalhar um dia interio de trabalho no SNS. O mais importante será rever toda a grelha salarial dos trabalhadores da saúde com progressões automáticas, por um lado, e por concurso, por outro, que correspondam a verdadeiros incrementos de salário, apetecíveis e justificativos para a permanência no SNS.

A questão de ligar salário e incentivos à produção de cuidados – fee for service adicional – é muito complexa na saúde. Produção, medida por número de atos, não significa mais qualidade. Os resultados em saúde são lentos para medir, porque são tardios e multifatoriais, complexos de definir e passíveis de escandalosas manipulações. Pode haver incentivos se estes estiverem associados a penalizações, embora estes esquemas devam funcionar apenas para instituições e não para indivíduos. Além deste tema dos incentivos, só por si alimentador de livros inteiros, desenganem-se os que acreditam na contratualização interna de serviços hospitalares e nos modelos de centros de responsabilidade integrada (CRI) como a panaceia para a melhoria salarial dos profissionais e garantia de solvabilidade financeira dos hospitais. Existirão caso, muito pontuais, com um enorme risco de seleção de casos e “desnatação”, em que estes regimes funcionem bem, mas os ganhos em saúde são geralmente pequenos se analisados numa ótica de todo o sistema de saúde.

Mas há mais. Precisamos, já o escrevi muitas vezes, de recuperar partes significativas das estruturas de prestação de cuidados de saúde, centros de saúde e hospitais, apesar do que já foi feito nos últimos 20 anos, assegurando condições de trabalho mais gratificantes, limpas, acolhedoras, devidamente mantidas e com espaços adequados, em dimensão e conceção, para que os trabalhadores sintam vontade de estar no local de trabalho. Em alguns sítios é mesmo preciso começar pelos WC, onde nem os autoclismos funcionam capazmente. Não estou a exagerar.

Olhando para o PRR, no que à saúde diz respeito, e ouvindo o discurso político, cotejando as promessas com que foi realizado, não fico nada tranquilo. Sinceramente, temo que de 87 possamos passar a 887. E será que essas “demissões” resolverão alguma coisa? Só por si, não. O caminho da solução passará por uma viragem política e essa só se fará com uma mudança profunda no sentido de voto dos Portugueses.

PS. Um Abraço forte e agradecido à Marisa Matias. Que grande lição nos deu, que grande ajuda foi para os que teimam sofrer em silêncio e para os que não têm como não seja continuar a sofrer sem ajuda. Todos temos dores inconfessadas,  que transportamos e escondemos. Somos a fachada do que somos. Todos tendemos a julgar os outros, sem nos julgarmos a nós. À Marisa, por tudo e mais isto, incondicionalmente de campos ideológicos quase sempre opostos, deixo os meus votos de sucesso pessoal e profissional. Quanto à política, desejar-lhe sucesso já seria pedir demais.