É uma das cenas mais conhecidas da história do cinema. A ação do filme “Casablanca”, como se sabe, passa-se durante a Segunda Guerra Mundial, na cidade administrada pelo governo francês colaboracionista de Vichy. A dada altura, no café de Rick, o expatriado norte-americano interpretado por Humphrey Bogart, alguns clientes começam a cantar a Marselhesa. Encolerizado, um oficial nazi exige ao chefe da polícia local que feche o café como medida punitiva. Obediente, depois de fazer um soar um apito para calar a sala, o polícia simula indignação e informa, em voz alta, que o estabelecimento vai ser encerrado. Quando Humphrey Bogart lhe pergunta o porquê de uma medida tão radical, ouve a frase que depois se tornaria célebre: “Estou chocado! Estou chocado por descobrir que aqui há jogo clandestino!”. Obviamente, havia pouco choque e muito teatro. Afinal, um dos apostadores regulares no Rick’s Cafe era o próprio chefe da polícia.

E agora chegamos a uma coincidência divertida: sabem como se chamava o chefe da polícia que fingiu estar “chocado” com aquela prática que todos conheciam? Chamava-se Louis. Nem de propósito: esta semana, Luís Montenegro também jurou estar chocado com a descoberta súbita de que no PSD de Lisboa se passam coisas reprováveis que levaram à intervenção da polícia. Depois da primeira notícia da TVI/CNN sobre a investigação do Ministério Público chamada Tutti Frutti, Luís Montenegro escreveu no Twitter: “É impossível pactuar com a corrupção da democracia. Temos de saber a verdade e tirar consequências. Exige-se que a justiça seja rápida e conclua esta investigação”.

Se o líder do PSD está tão preocupado com a “corrupção da democracia”, se está tão empenhado em saber “a verdade” e se está tão apressado para “tirar consequências”, então o melhor é não ficar dependente dos tempos, dos critérios e das limitações do sistema judicial. Luís Montenegro é o líder do partido e, por isso, pode fazer perguntas, pode chamar pessoas, pode olhar para documentos, pode analisar contratos, pode falar com empresários e pode cruzar nomes. Ou então, se não quiser fazer nenhuma destas coisas, elementares mas cansativas, pode simplesmente ler artigos antigos do Observador.

A 20 de julho de 2017, por exemplo, o Observador explicava como os caciques do PSD/Lisboa angariavam votos e transportavam militantes artificiais para as mesas de voto usando carrinhas em viagens sucessivas que cruzavam a cidade. Um desses militantes por conta de outrem cujas quotas foram sempre pagas por desconhecidos dava a cara e explicava: “É tudo uma máfia. Eu nem sei em quem votei. Foi por indicação. Pediram-me para votar e eu fui lá”. Naquele artigo, estão vários personagens que reaparecem agora nas notícias da TVI/CNN, como se pode ver por este excerto: “A fação de Nuno Firmo em Lisboa depende da influência de Luís Newton, presidente da junta de Freguesia da Estrela, e de Sérgio Azevedo, deputado do PSD, com quem tem alinhado desde os tempos da JSD”.

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Outro exemplo para Luís Montenegro. A 27 de junho de 2018, um artigo do Observador começava assim: “Os contratos adjudicados por três juntas de freguesia lideradas pelo PSD a empresas de militantes sociais-democratas estão no centro da Operação Tutti Frutti. Estão em causa montantes superiores a 1 milhão de euros e suspeitas de corrupção, tráfico de influências e participação económica em negócio. Luís Newton, presidente da Junta de Freguesia da Estrela, e Carlos Eduardo Reis, dono de uma sociedade de Barcelos que lucrou com tais adjudicações, são dois dos principais suspeitos do inquérito coordenado pela 9.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa e coadjuvado pela Polícia Judiciária”.

Naturalmente, as reportagens da TVI/CNN acrescentam dados, acrescentam informação e, ponto muito importante, acrescentam a transcrição de escutas telefónicas tão comprometedoras como uma pistola fumegante. Mas as peculiaridades do PSD/Lisboa que estão em causa neste processo eram conhecidas e sabidas; estavam detalhadas e explicadas. Mas, aparentemente, os mais altos responsáveis do PSD querem convencer-nos que nunca deram por nada, como se fossem um grupo de excursionistas extraterrestres em visita ao planeta Terra.

Luís Montenegro pode continuar a simular ignorância — desde que esse seja apenas o primeiro passo para a ação, que neste caso devia ser brutal e irreversível. Mas não haja ilusões: como diria Maria José Nogueira Pinto, ele sabe que nós sabemos que ele sabe que nós sabemos.