Continuem a gastar, porque as regras estão suspensas e as economias precisam de despesa pública; ou, cuidado com a despesa pública e o endividamento, porque apesar das regras estarem suspensas a realidade não está e isso paga-se. Os factos e os conselhos da União Europeia (UE) aos Estados-membros parecem ter duas interpretações possíveis conforme o gosto ideológico e consequências diferentes em matéria de políticas económicas.

A notícia de que a UE manterá suspensas as regras orçamentais, provavelmente até 2023, permitindo aos governos desviarem-se do objectivo de ter défices menores do que 3% e dívida pública menor do que 60% do PIB, e a publicação do Pacote de Primavera do Semestre Europeu, que sugere aos governos que devem continuar a apoiar as economias, mas não deixa de assinalar os problemas estruturais de cada Estado-membro (como o endividamento público e privado português e a má produtividade nacional), pode ter duas leituras, ambas verdadeiras mas com conclusões divergentes.

A suspensão das regras aconteceu porque o efeito devastador de ter países confinados e indústrias forçadas a encerrar impunha que o Estado acorresse a salvar da catástrofe empresas e pessoas que não podiam trabalhar nem podiam ter-se precavido para uma situação com esta dimensão. Não aconteceu porque houve uma transformação radical do pensamento dominante. Nem porque o efeito do aumento da despesa pública sem aumento de receita deixou de se fazer sentir. Como, de resto, demonstram os documentos do Semestre Europeu, acabados de publicar. Estados-membros muito endividados que tiveram de gastar para acorrer à economia continuam com grandes défices e muito endividados. E a redução da actividade económica só agravou a relação entre a dívida e o PIB.

A suspensão das regras não suspende a realidade. Mas a suspensão da normalidade, que foi o que aconteceu neste ano e quase meio, altera profundamente a realidade.

Além de chegarmos aqui mais endividados e com défices crescentes, também estamos perante uma súbita aceleração da inflação, na Europa e lá fora, que os economistas ainda não decidiram se é provisória ou veio para ficar e, então, implicará o agravamento de taxas de juro e a alteração de políticas do Banco Central Europeu, que têm servido para manter a pressão sobre as dívidas públicas em valores aceitáveis e a liquidez na economia. A isto, acresce que há um aumento do custo de várias matérias-primas, que os economistas também ainda não decidiram se é conjuntural ou estrutural, por força das necessidades resultantes da transformação verde (não tanto da digital) da economia, ou ambas.

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Quem quiser pode olhar para a realidade pelo ângulo da necessidade de despesa pública e da suspensão das regras que permite fazer o que se quiser ou achar necessário. E até pode acreditar que até 2023 as regras serão revistas para permitir gastar mais, ou melhor, ou contabilizar de outra forma os gastos que consideram salutares. No verde, no social, no digital, ou noutra coisa qualquer. Mas quem quiser, também pode recordar que a assimetria do choque económico da pandemia resultou tanto das características das diferentes economias (mais ou menos expostas a actividades que exigem mobilidade e socialização, como o turismo e a restauração), como do ponto de partida (que é como quem diz, achar que afinal o Diabo veio e nem todos estavam preparados). E que, mesmo que seja só para gerir, como afirmava um ex-primeiro-ministro, quanto maior a dívida, irremediavelmente maior é o seu custo sobre o Orçamento do Estado e de quem paga impostos.

O Semestre Europeu foi criado na sequência da crise de 2008 para obrigar os Estados a convergir (pelo menos nominalmente) e para diminuir o risco de necessidade de resgates futuros. Eram as condições então consideradas indispensáveis para o bom funcionamento de economias com uma mesma moeda. Hoje, há dois discursos antagónicos sobre o tema, apoiados por argumentos contraditórios entre si. De um lado, os que querem mais coordenação, porque querem mais integração e acreditam que é a única forma de viabilidade da moeda única, e os que acreditam que sem regras externas alguns Estados-membros serão incontinentes na despesa e irresponsáveis no endividamento. Do outro lado, juntam-se os que querem regras mais flexíveis, ou outras regras, porque acham que as economias mais frágeis o serão irremediavelmente, e terão sempre de haver transferências, e os soberanistas, que acham que o Semestre Europeu faz parte do domínio externo da política nacional e querem mais liberdade para governar.

Enquanto estamos anestesiados pela convicção de que a bazuca jorrará milhões sobre todos, sem cuidar de distinguir entre fazer parte da economia verde ou consumir o que parte dessa economia produz (a diferença entre produzir carros elétricos ou comprá-los, para simplificar), parecemos acreditar que a suspensão das regras suspende a realidade indefinidamente e poderemos viver felizes e sem falta de dinheiro para sempre. Alternativamente, podemos começar a comparar como cada país vai gastar o dinheiro da Europa e a que resultados vai chegar. Para daqui a dez anos sabermos se temos de responsabilizar as regras ou as políticas.

Henrique Burnay (no twitter: @HBurnay), consultor em assuntos europeus, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Madalena Meyer Resende, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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