Apesar de não existir nenhum caso entre os refugiados afegãos que chegaram a Portugal, o ministro da Defesa afirmou que, no caso das famílias poligâmicas, os homens casados com mais do que uma mulher apenas poderiam trazer consigo uma delas. Declarações que causaram surpresa e confusão, seguidas de críticas, uma vez que a poligamia está prevista na lei afegã e são precisamente as mulheres um dos grupos que corre mais perigo perante a chegada ao poder dos talibãs.

Para justificar a posição de Portugal — “os tradutores e intérpretes que trabalharam connosco têm o direito de trazer uma esposa, no caso de haver mais do que uma, como acontece, por vezes, no Afeganistão” —, defendida em entrevista à RTP, João Gomes Cravinho disse que o Governo seguiu critérios estabelecidos ao nível da NATO, numa altura em que se aproximava o fim da presença ocidental do Afeganistão e os Estados-membros estavam em contrarrelógio para resgatar o máximo de pessoas possível.

No entanto, contactada pelo Observador sobre a existência de um critério em que um homem apenas possa trazer uma das suas mulheres para o país de acolhimento, e se esse critério tem de ser seguido pelos Estados-membros, fonte oficial da NATO assegurou que os países têm autonomia para adotar as suas políticas de acolhimento.

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“A NATO, enquanto organização internacional, não concede asilo nem aprova pedidos de visto. As decisões sobre acolhimento dizem respeito às nações individualmente, mas a NATO faz todos os possíveis para a ajudar a facilitar esses processos”, afirmou fonte oficial da organização, por e-mail, em resposta às questões do Observador, remetendo a questão do acolhimento das mulheres de afegãos com estatuto de refugiado para os Estados-membros.

Contactado pelo Observador, fonte do Ministério da Defesa mantém que a posição do Governo foi baseada em critérios definidos e discutidos dentro da NATO, embora não tenha respondido às sucessivas questões sobre onde podem ser consultados esses critérios nem sobre o facto de a NATO ter referido que cabe a cada Estado-membro da organização definir as políticas de acolhimento.

Para clarificar esta questão, o Observador tentou também contactar o Ministério dos Negócios Estrangeiros, assim como a delegação portuguesa junto da NATO e o Ministério da Presidência e Modernização Administrativa, para perceber onde pode ser consultado esse critério ou se, por outro lado, se trata de uma posição tomada pelo Governo português — mas não obteve qualquer resposta. O Ministério da Administração Interna, por seu lado, remeteu apenas para a mesma entrevista do ministro à RTP, sem dar quaisquer explicações adicionais.

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Mesmo que este critério não se tenha aplicado a nenhum dos afegãos que colaboraram com Portugal e que, por isso, têm direito a asilo no país, as declarações de João Gomes Cravinho deixaram claro que, se houvesse afegãos casados com mais do que uma mulher, teriam de escolher, até porque, questionado mais tarde pela SIC sobre a possibilidade de vir a recuar neste critério, o ministro respondeu negativamente.

Espanha e Alemanha não referem a alegada regra da NATO

O Observador procurou saber se outros Estados-membros da NATO seguiam o alegado critério invocado por Portugal. O Ministério do Interior espanhol remeteu para a lei do direito de asilo em Espanha, que estabelece que “qualquer beneficiário em Espanha pode solicitar a extensão ou o reagrupamento familiar dos descendentes e ascendentes que dele dependam”.

Questionado especificamente se, nos casos de homens casados com mais do que uma mulher, todas têm o direito de ser acolhidas, a mesma fonte do Ministério do Interior espanhol reiterou que “a lei estende a proteção internacional a toda a família”, embora “cada pedido seja estudado individualmente”.

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Resposta semelhante veio da embaixada da Alemanha em Portugal. “A Alemanha reconhece a sua responsabilidade pelos cidadãos afegãos que trabalham ou trabalharam para instituições alemãs no Afeganistão. É por isso que o governo federal elaborou uma lista de todos os cidadãos afegãos localmente empregados pelas instituições alemãs (no passado e no presente). Estes cidadãos serão recebidos na Alemanha, juntamente com os seus cônjuges e filhos menores de idade e solteiros”, lê-se na resposta enviada pela embaixada alemã ao Observador.

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Como acontece em vários países muçulmanos, no Afeganistão a poligamia ou a poliginia está prevista na lei, e os homens podem casar com um máximo de quatro mulheres. Essa possibilidade está, de resto prevista no Alcorão, nota Faranaz Keshavjee, especialista em assuntos islâmicos e sociedades muçulmanas, considerando por isso que, a existir o critério de o homem apenas poder trazer uma das suas mulheres, está em causa uma questão “grave” e de um “contra-senso em relação aquilo que é o princípio ético islâmico”.

“A poligamia ou poliginia está prevista para situações de proteção. Há aqui um elemento contraditório. Não se trata de uma opção sexual do homem muçulmano, como se fosse um capricho dos homens que querem ter várias mulheres”, afirma Keshavjee, formada em Antropologia e Psicologia Social, ao Observador. Considero tremendamente injusta esta posição. E, do ponto de vista islâmico, vai contra o que é a ética e a moral muçulmana, pois trata-se efetivamente, abandonar quem mais precisa de ajuda”, acrescenta.

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Para a especialista em assuntos islâmicos, a ideia de que faria sentido a escolha de uma mulher revela que ainda existe “algum desconhecimento e ignorância em relação a estas questões”. “Os muçulmanos e o Islão em geral continuam a ser muito exotizados. Esta é uma visão muito orientalista, que é a de que do outro lado são todos incivilizados, bárbaros, não têm as mesmas regras que nós, são promíscuos”, denuncia  Keshavjee.

Quando reafirmou em entrevista à SIC Notícias, na passada quinta-feira, que Portugal não tinha mudado de posição, embora não existam casos entre os afegãos acolhidos em Portugal, João Gomes Cravinho considerou que, perante a complexa operação de resgate em curso, esta questão era “perfeitamente secundária no quadro da emergência com a qual estamos a lidar”. Além disso, considerou que se tratava de uma questão “puramente filosófica e teórica”. Tese contestada por Liliana Rodrigues, presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).

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“Não gostei da forma como foi colocado, porque não são questões secundárias. É óbvio que retirar as pessoas é a urgência, mas temos outras urgências, e é importante ter noção disso. Uma delas é perceber as questões das mulheres e das famílias, tentar resgatar o máximo de pessoas que consigamos, mas sem dúvida alguma reconhecer a importância do resgate das mulheres, precisamente pela situação que vivem naquele país”, reagiu Liliana Rodrigues em declarações ao Observador, rejeitando também que a questão seja meramente teórica ou filosófica.

“Não tem a ver só com questões teóricas ou filosóficas, tem a ver com a forma como vemos o mundo e como é importante falar sobre essas questões, para que estas discussões entrem na ordem do dia e na discussão central de pensar planos de resgate e de acolhimento destas pessoas no nosso país”, rematou Liliana Rodrigues.

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