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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Arnaut Moreira. "A guerra da Ucrânia vai sobrar para a Europa. Do ponto de vista físico, da confrontação"

O major-general Arnaut Moreira faz um balanço dos dois anos da guerra na Ucrânia. Diz que a Europa falhou e desperdiçou tempo na preparação para o inevitável.

A Europa estará a olhar para o lado para fugir ao inevitável, a guerra? O major-general Arnaut Moreira pensa que sim. Numa conversa gravada para o podcast da Rádio Observador “A História do Dia”, o especialista em geopolítica admite como possível o alastrar do conflito da Ucrânia e acrescenta que desperdiçámos dois anos preciosos para nos prepararmos. No episódio que serve de base a esta entrevista, Arnaut Moreira reflete sobre o que aprendemos desde o início da invasão e o que revelam os sinais sobre o futuro próximo. O especialista em estratégia é muito cru e crítico ao afirmar que a Europa não tem munições nem equipamentos militares para se defender e o auxílio aos ucranianos titubeia perante esta realidade. Acresce a tudo isto o domínio de Donald Trump na corrida à Casa Branca. A pergunta que o mais o inquieta é se ainda vamos a tempo de recuperar o tempo perdido?

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"Não estamos preparados para as surpresas da guerra. Ora, a Federação Russa, que é herdeira da União Soviética, perdeu milhões e milhões de soldados durante a Segunda Guerra Mundial e, portanto, ganhou resiliência relativamente às mortes. Ou seja, 20 mil mortes na conquista de Avdiivka, por exemplo, não têm efeito político nenhum na Rússia. No Ocidente, se houvesse algum general que montasse uma operação em que morressem dez soldados, não estava no seu posto no dia seguinte".

Há um ano, aqui na “História do Dia”, explicava que a vontade dos povos é determinante para travar os números, por mais avassaladores que eles sejam. Essa foi a lição do primeiro ano de guerra. E neste segundo, o que aprendemos?
Continua válida aquela minha expressão de que “o poder é a multiplicação da vontade pelas capacidades”. Quando não há vontade não adianta ter capacidade. Por outro lado, ter capacidades e não ter vontade também não dá poder nenhum. Isto é uma expressão que não depende das circunstâncias. O que vai variando ao longo do tempo, e é isso que talvez seja aqui importante verificar, é como é que evoluíram essas vontades ao longo deste último ano.

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E isso leva-nos a este momento em que podemos fazer um ponto de situação da guerra.
Neste momento, o que estamos a assistir é mais do que a questão das capacidades. A Federação Russa, nomeadamente, Putin e os seus interlocutores, têm-se esforçado em ativar a questão da vontade ocidental. A grande guerra não é aquela guerra dos 29 km2 de Avdiivka, é sim todo o simbolismo que isso pode trazer e o auxílio que traz à narrativa de Putin, necessária para destruir a nossa vontade. Putin age através de três grandes linhas de ação: os bloqueadores, os agitadores e os narradores.

Pode explicar melhor esse conceito?
Os bloqueadores são as pessoas que têm responsabilidades políticas, na NATO, ou na União Europeia — os que podem bloquear todos os processos que permitam à Ucrânia olhar com segurança para o seu futuro.

Viktor Orban, por exemplo?
Sim, mas também Erdogan, Mike Johnson nos Estados Unidos. Estes são os bloqueadores. São pessoas que estão dentro do sistema e podem bloquear todos os avanços que permitam o auxílio à Ucrânia. Depois, existem aquilo que chamo os agitadores. Estes nem sempre sabem o que fazem, porque agem por motivos que não têm a ver com a guerra. Os agricultores polacos, que estão nas auto-estradas bloqueando o trânsito dos cereais ucranianos para a Europa e para outros lados, entram neste campo dos agitadores. São pessoas que têm coisas a defender e isso acaba por contribuir para que a Federação Russa tenha um acréscimo de superioridade em relação à Ucrânia. Eles agem por conta própria.

Uma ação quase inconsciente…
O que é que a Federação Russa faz? Atua nas redes sociais, amplificando todas as vozes de descontentamento que, no final, se podem traduzir em manifestações para demonstrar que, afinal, não existe unanimidade no Ocidente no apoio à Ucrânia. E temos ainda os narradores. São pessoas, que muitas vezes, sob um perfil de independência, e isso é importante para poder chegar ao público, não fazem mais do que transmitir a narrativa de Moscovo.

Dá-lhe credibilidade…
Sim. Tucker Carlson, o homem que entrevistou Putin, é um destes narradores. Sem ter uma uma posição crítica vai engolindo tudo o que ouve e depois, ainda se presta ao serviço de ir glorificando tudo aquilo que vê aqui e ali, procurando mostrar como a Federação Russa é que está no caminho certo. Mas há outros também importantes. Elon Musk foi o homem que providenciou e disponibilizou a rede Twitter, agora X, para a difusão da entrevista de Tucker Carlson a Putin. E basta ver os seus [Musk] comentários nas redes sociais, também ele está muito mais próximo do presidente russo do que da administração norte-americana. Estes três: os bloqueadores, os agitadores e os narradores têm permitido a Vladimir Putin somar algumas vitórias naquilo que diz respeito à coerência da atuação do mundo ocidental.

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"Entretanto, em dois anos, produzimos o quê? O que é que produzimos que nos permitissem encarar, ao fim deste tempo todo, com segurança a nossa própria defesa? Porque, quem esteve atento à conferência de segurança de Munique ficou com esta ideia de que — é uma perspetiva praticamente unânime — isto vai sobrar para a Europa. Vai sobrar, do ponto de vista físico, da confrontação, e a Europa continua a pensar que não, que isto vai ficar na Ucrânia e lá muito longe".

E há um ano também falávamos aqui na “História do Dia” sobre o grau de impreparação da Europa no que toca à defesa para um conflito militar. Entretanto, soaram os sinos a rebate por parte da NATO e surgiu uma exigência para aumentar para 2% do PIB o orçamento da defesa. Neste último ano foi feito o suficiente ou a liberdade de que continuamos a gozar deste lado do mundo atira os problemas para bem longe criando uma sessão de segurança?
Vou ser muito claro sobre isto, a Europa está hoje muito pior do que estava no início da guerra. Na verdade, desperdiçámos dois anos de preparação. Foram absolutamente desperdiçados. Não é que nós não tenhamos auxiliado a Ucrânia, mas fizemo-lo através da entrega das nossas reservas estratégicas. Nada foi feito no sentido de repor as reservas. Nada foi feito no sentido de repor a nossa capacidade ao nível de efetivos militares.

Estamos literalmente a gastar munições…
Estamos tão depauperados, que a certa altura não temos nem munições nem equipamentos para dar à Ucrânia, nem para nos defendermos. Porque não basta entregar. Apoiar foi o gesto mais útil que pudemos fazer, mas era o gesto imediato. Entretanto, em dois anos, produzimos o quê? O que é que produzimos que nos permitissem encarar, ao fim deste tempo todo, com segurança a nossa própria defesa? Porque, quem esteve atento à conferência de segurança de Munique ficou com esta ideia de que — é uma perspetiva praticamente unânime — isto [a guerra a Ucrânia] vai sobrar para a Europa. Vai sobrar, do ponto de vista físico, da confrontação, e a Europa continua a pensar que não, que isto vai ficar na Ucrânia e lá muito longe.

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"O que é que produzimos que nos permitissem encarar, ao fim deste tempo todo, com segurança a nossa própria defesa? Porque, quem esteve atento à conferência de segurança de Munique ficou com esta ideia de que — é uma perspetiva praticamente unânime — isto vai sobrar para a Europa. Vai sobrar, do ponto de vista físico, da confrontação, e a Europa continua a pensar que não, que isto vai ficar na Ucrânia e lá muito longe".

Enquanto isso, do outro lado, tendo a Rússia um poderio militar avassalador, está a gastar munições a uma velocidade estonteante e, ainda assim, continua com reservas?
Esse aspecto é muito interessante. Esse poderio tem sido, talvez, excessivamente amplificado em termos daquilo que são as enormes capacidades da Federação Russa, porque isso corresponde à narrativa de Vladimir Putin. Não é exatamente assim. É preciso ler o trabalho que o Instituto de Estudos Estratégicos produziu recentemente sobre isso. O número de carros de combate disponíveis é hoje idêntico ao número que a Federação Russa tinha no início — e já perdeu muitos. Terá perdido, provavelmente, cerca de três mil carros de combate, mas foi capaz de recuperar outros três mil que tinha em depósito. A Federação Russa conseguiu, com um enorme esforço de guerra da sua indústria, recuperar material que tinha em depósito, mas que não é material novo. Os números são semelhantes, mas já não tem a mesma qualidade. Os T55, como diz o nome, são dos anos cinquenta do século passado e os T62 são dos anos sessenta. Aquilo que a Federação Russa tem hoje no campo de batalha é em número semelhante àquilo que tinha no início da guerra, mas não é da mesma qualidade. Isto significa que temos uma enorme visibilidade sobre aquilo que são as reservas estratégicas da Federação Russa, porque elas estão ao ar livre, estão à vista. Todos os dias passam os satélites que permitem contar o número de viaturas que ainda existem — e continuam a existir muitas. O problema é que a Federação Russa para manter a quantidade teve de abdicar da qualidade.

Do lado do lado ucraniano, o esforço de guerra continua a ser alimentado com munições e armamento, mas onde andam os aviões, os F16?
Os F16 não vão aparecer tão cedo. Os caças, que foram disponibilizados, não eram os aparelhos que estavam no ativo. Muitos países disponibilizaram F16 porque, entretanto, já tinham adquirido outras aeronaves, nomeadamente os F35 norte-americano, de outra geração. Em vez de os deitarem para o lixo, estes F16 foram fornecidos à Ucrânia. Para poderem ficar outra vez operacionais, aconteceu a mesma coisa que aconteceu aos carros de combate Leopard — oferecemos os Leopard, mas os que estavam em depósito e não estavam em condições de entrar imediatamente em combate. Ou seja, há dois processos a decorrer: a formação dos pilotos, que é absolutamente essencial, e fazer os upgrades, as melhorias suficientes nos F16 para lhes dar uma segunda vida operacional. Estes caças podem fazer a diferença, mas, atenção, vão precisar também de munições e essas munições vão ter de ser fornecidas pelos Estados Unidos. Arriscamos no meio desta equação termos a certa altura pilotos formados, termos aviões prontos e não termos munições.

E a contraofensiva ucraniana, de que se falou durante o ano, aconteceu?
Sim, chegou a acontecer, simplesmente não obteve nenhum dos resultados previstos. Por duas razões relativamente simples, a primeira está relacionada com o facto de termos demorado muito tempo a entregar o equipamento. A Ucrânia tinha montado uma operação para coincidir com aquilo que era um momento de maior fragilidade da Federação Russa na enorme frente de batalha, mas os carros de combate, os sistemas de artilharia, os veículos blindados, os veículos de combate de Infantaria, que foram disponibilizados pelo Ocidente não chegaram a tempo. A Federação Russa teve cerca de seis meses de aviso e não foi surpreendida: “Vai acontecer uma ofensiva da Ucrânia”. Uma notícia destas dá seis meses de avanço. A Federação Russa passou meio ano a escavar terras. Tem milhões de minas para para instalar e construiu uma rede defensiva fantástica apoiada nas reservas do que eu chamo de “criptorecrutamento”, que é um recrutamento às escondidas. A Rússia tem-se especializado nesta forma de recrutar, porque, primeiro é preciso ir buscar os nepaleses, os sírios, os chechenos, tudo menos os russos. E se tiverem de ir, que vão os presidiários, os que estão em condições muito vulneráveis ou abandonados pela sociedade. E este “criptorecrutamento”, que tem resultado, permitiu também à Federação Russa guarnecer, pelo menos, a primeira linha. Logo que chegou a ofensiva ucraniana verificou-se que estava ali um obstáculo praticamente inultrapassável perante as fortificações e os campos minados. A contraofensiva foi perdendo fulgor e ao fim de poucas semanas parou, ficou num impasse. Entretanto, a Federação Russa, que tinha posto a sua máquina industrial de guerra toda a funcionar e que tinha mantido todos estes esquemas de “criptorecrutamento” ficou com a capacidade de passar à contra-ofensiva. A primeira fase é sempre deter a ofensiva e depois aproveitar esse momento de fraqueza para passar à contraofensiva. Era isso que a Ucrânia pretendia fazer, mas como demorou muito tempo entre parar os russos e passar à contraofensiva… perdeu o momento.

Ouça aqui a conversa na íntegra no episódio desta sexta-feira do podcast “A História do Dia”.

Os ucranianos vão aguentar mais um ano de guerra?

No plano político está ou não a instalar-se aquilo que algumas pessoas chamam de “fadiga da guerra” entre os aliados ocidentais?
A fadiga é igual para todos os lados, mas não tem os mesmos reflexos políticos. De um lado e de outro há soldados que estão a morrer, que têm famílias, têm primos, têm conhecidos e todas essas pessoas estão a sofrer. Os impactos diretos sobre as famílias são iguais quer do lado ucraniano quer do lado da Federação Russa. Se calhar, até são mais do lado da Federação Russa, que tem perdido muito mais efetivos do que os ucranianos. Porém, enquanto os efeitos sobre a resiliência dos povos ocidentais é tremenda, a Federação Russa tem todos os instrumentos montados para mostrar que são heróis em defesa da sua pátria e a lutar contra o nazismo. E esta narrativa tem permitido fazer com que não haja uma transferência da insatisfação, que resulta destas famílias pela perda dos seus entes queridos, para um movimento de natureza política, que possa afetar a estabilidade do regime. O que temos aqui são efeitos políticos diferentes, que resultam de um lado e do outro quando as perdas do lado da Federação Russa são certamente superiores às do lado ucraniano. Isso levanta o problema da resiliência dos regimes. Nós, Ocidente, podemos montar uma operação militar. Se, no primeiro dia morrerem cinco soldados, acabou a operação. Não temos resiliência para a condução da operação militar, tudo tem de ser limpinho, não vai morrer ninguém e tudo vai correr bem. Não estamos preparados para as surpresas da guerra. Ora, a Federação Russa, que é herdeira da União Soviética, perdeu milhões e milhões de soldados durante a Segunda Guerra Mundial e, portanto, ganhou resiliência relativamente às mortes. Ou seja, 20 mil mortes na conquista de Avdiivka, por exemplo, não têm efeito político nenhum na Rússia. No Ocidente, se houvesse algum general que montasse uma operação em que morressem dez soldados, não estava no seu posto no dia seguinte.

Isso faz toda a diferença no apoio da opinião pública?
Isto faz com que a opinião pública, a certa altura, deixe de acreditar que seja possível. E esse é o grande instrumento de Putin, neste momento. É escrever uma narrativa que mostra como o Ocidente está desunido o nunca conseguirá impor uma derrota estratégica à Federação Russa.

No arranque da guerra Putin conseguiu o contrário, unir o Ocidente. Agora, temos aqui um outro dado, Donald Trump pode ganhar as presidenciais nos Estados Unidos em novembro. O que poderá acontecer depois?
Trump já está a ganhar. Se o problema ocorresse só em janeiro, altura da tomada de posse, isso dava-nos um ano de preparação para pôr as máquinas de produção militar a funcionar. Só que já não temos esse ano. Trump parece que está na presidência desde meados de dezembro do ano passado, porque Joe Biden tem sido absolutamente incapaz de obter também os consensos entre os dois partidos para que o apoio norte-americano a Ucrânia seja efetivo. Há outro aspecto fundamental nisto (é a minha visão): há uma enorme coincidência na visão estratégica entre Donald Trump e Vladimir Putin, nenhum deles acredita nas instituições multilaterais. Estas instituições foram criadas para evitar a guerra ou diminuir as consequências dos conflitos e para proteger os mais pequenos. Proteger os mais pequenos no sistema internacional é conseguir um conjunto de garantias através das instituições multinacionais que impeçam que os pequeninos acabem por desaparecer no confronto com os grandes. Putin e Donald Trump têm exatamente a mesma visão do sistema internacional: é que não interessa para nada esta coisa das instituições multilaterais. Por exemplo, Trump pensa porque há-de negociar com a União Europeia (UE)? A UE são mais de quatrocentos milhões de pessoas, tem um PIB enormíssimo e tem peso. Se a UE não existisse, Trump iria negociar com cada um dos países individualmente. Foi isso que aconteceu na América Central e do Norte, em que ele destruiu os acordos comerciais com o México e com o Canadá e foi fazer individualmente um acordo com cada um deles. Trump acha que, em face daquilo que é a grandeza e o potencial dos Estados Unidos, Washington têm muito mais a ganhar naquilo que é uma negociação de natureza bilateral, em que pode exercer todo o seu poder negocial, do que estar a negociar com instituições onde muitas vezes o seu voto é absolutamente minoritário em relação àquilo que são os votos dos estados membros. Putin tem esta mesma visão de que as instituições multilaterais só atrapalham o que ele gosta de fazer, a aplicação direta do poder violento.

epa10397818 (L-R) European Council President Charles Michel, NATO Secretary General Jens Stoltenberg and European Commission President Ursula von der Leyen shake hands during the signing ceremony of the Joint Declaration on NATO-EU Cooperation at the Alliance headquarters in Brussels, Belgium, 10 January 2023.  EPA/STEPHANIE LECOCQ
"A Federação Russa não desistiu de chegar à capital ucraniana. Todos os que acham que vamos tornar a Rússia dócil se lhes fornecermos a Ucrânia e o Donbass estão a fazer a mesma coisa que fizemos quando achamos que Putin ia ficar satisfeito, em 2008, com os territórios na Geórgia ou com as sublevações no Donbass e a anexação da Crimeia em 2014. De território em território, porque a Europa não está preparada para a guerra, vamos cedendo progressivamente à Federação Russa. Esse é o preço que se paga quando não estamos preparados para assumir uma coisa que temos que assumir: a guerra pode não ser da nossa escolha, pode nos ser imposta, podemos não a querer, mas podemos ter que fazer a guerra".

E, na prática, se Trump ganhar, o apoio norte-americano, que tem sido fundamental, pode ficar em causa?
Há um expressão que é, para mim, a mais definidora de Donald Trump feita em ambiente de campanha eleitoral — não acredito que ele também não esteja a pensar assim — se ele for eleito presidente dos EUA a guerra na Ucrânia acaba num dia. Isto só é possível de uma maneira: entregar a Ucrânia à Federação Russa, não há outra. Vejo aqui avolumar-se um conjunto de problemas que a Europa não vai conseguir resolver em tempo. A Europa não foi capaz, por culpa própria, de alimentar a própria NATO. Os EUA têm muitas recriminações em relação à forma como nós tratamos a NATO. Em 1977 houve uma uma reunião da Aliança Atlântica, em que foi apontado como gastos de defesa o patamar acima dos 3% — na altura a guerra era fria. Não havia uma guerra quente. Todos considerámos que mais de 3% seria o patamar adequado e depois, voltámos para os 2% — tenho alguma experiência nisto porque falei com muita gente nestes processos de negociação e com as equipas da NATO. Os 2% é a manutenção das capacidades existentes, isto é, apenas manter tudo a funcionar. Mas isto pressupõe que essas capacidades existem e que estão operacionais. No entanto como, durante anos e anos, nunca investimos os 2% na defesa, as capacidades perderam-se. Agora, quando invisto 2%, o que estou a fazer é a manter as atuais capacidades, que não estão operacionais.

Ou seja, é pagar a água, a luz e o gás…
É exatamente isso e os ordenados. Não sobra nada para aquilo que é preciso, que é repor a capacidade operacional e os 2% são insuficientes para isso. Mas o problema não é só esse. Não temos apenas de recuperar as nossas capacidades operacionais, temos também de sustentar a guerra na Ucrânia. Para isso, é preciso um esforço suplementar do ponto de vista dos gastos com a defesa. Esta questão dos 2% é ridícula, de quem não faz contas sobre estas coisas e de quem não vê que este valor não é para esta situação. Para isto contribuiu o facto de a Alemanha nunca ter atingido os 2%.

Só agora atingiu essa percentagem.
Exatamente. E todos ficámos com esse conforto, sobretudo na Europa do Sul. A nossa atitude foi: “Se me vierem dizer alguma coisa, atiro logo para a Alemanha. Mas a Alemanha também não gasta 2%”. Agora, a Alemanha já gasta os tais 2%.

O major-general Arnaut Moreira é o autor do podcast semanal da Rádio Observador “O Domínio da Guerra”. Aqui encontra todos os episódios.

E se nesta altura tudo ficasse como está, ou seja, se Kiev cedesse o controlo das zonas ocupadas a Moscovo, a guerra poderia parar ou, pelo menos, ficar congelada. Que custo é que esta solução poderia ter para todos nós?
Há três ideias que são importantes aqui para perceber esse objetivo, um objetivo político final. A de Serguei Lavrov [ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia] é: podemos chegar a um consenso para acabar com a guerra se reconhecerem que estes territórios, que agora foram ocupados, pertencem e integram a Federação Russa. Esta é a base negocial para tudo na visão de Lavrov. Depois há versão de Vladimir Putin, que defende que os territórios conquistados são russos, mas ainda “não procedemos à desnazificação” do regime, o que significa que a ambição não é apenas de natureza territorial, é também de natureza política. É preciso substituir o regime que está em Kiev por um que seja favorável a Moscovo. Seria uma espécie de Bielorrúsia 2.0. E ainda há o Dimitri Medvedev [vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional russo], que é muito claro e sem rodeios: a Ucrânia nunca existiu, não existe e não vai existir. Mais claro do que isto não poderia ser. O propósito final da Federação Russa não é ficar com os territórios do Donbass e da Crimeia, é moldar um regime em Kiev que seja favorável a Moscovo. Isto é cada vez mais difícil do ponto de vista político porque, entretanto, todas aquelas regiões, que no passado costumavam votar a favor dos regimes russófonos, já não podem votar no regime em Kiev uma vez que já foram incorporadas na Federação Russa. Ou seja, cada vez mais o horizonte eleitoral disponível na Ucrânia, excluindo os territórios ocupados, não é pró-russo, é claramente anti-russo. Pela via eleitoral, muito dificilmente o Kremlin poderia atingir os seus objetivos. Precisa, portanto, de uma pressão militar sobre Kiev. A Federação Russa não desistiu de chegar à capital ucraniana. Todos os que acham que vamos tornar a Rússia dócil se lhes fornecermos a Ucrânia e o Donbass estão a fazer a mesma coisa que fizemos quando achamos que Putin ia ficar satisfeito, em 2008, com os territórios na Geórgia ou com as sublevações no Donbass e a anexação da Crimeia em 2014. De território em território, porque a Europa não está preparada para a guerra, vamos cedendo progressivamente à Federação Russa. Esse é o preço que se paga quando não estamos preparados para assumir uma coisa que temos que assumir: a guerra pode não ser da nossa escolha, pode nos ser imposta, podemos não a querer, mas podemos ter que fazer a guerra. E para isso, temos de estar preparados e é isso que ainda não se ouviu no Ocidente.

E os ucranianos vão aguentar mais um ano?
Não têm outra hipótese que não seja aguentar. Aliás, como disse, um dos fatores do poder é a vontade e parece-me que a vontade dos ucranianos não decresceu durante este período. Nenhum deles, hoje em dia, quer ser russo outra vez e cada vez quer ser menos russo face à violência perpetrada pelo regime do Kremlin sobre a população ucraniana. Do ponto de vista da vontade, a Ucrânia não deixará de ser um obstáculo. A questão está no outro lado da equação do poder, ou seja, nas capacidades para manter o esforço de guerra. Isto é, até posso conduzir apenas uma guerra de guerrilha. Quando não tenho um exército de natureza convencional nem armas, posso optar por este tipo de conflito, que se prolonga no tempo e que consiste em ir eliminando todas as estruturas institucionais que a Federação Russa vai montando nos territórios ocupados. Mas isto obriga a que o Kremlin tenha um instrumento repressivo enorme na Ucrânia e isso custa muito dinheiro, que é algo que a Federação Russa não tem. Além disso, estes instrumentos repressivos consomem imensa gente e montar este aparelho sobre uma sociedade que não se deixa dominar também tem custos políticos enormes.
Mas antes de terminar e para não ficarmos com a ideia de que Putin ganhou com tudo isto, importa explicar, que a Federação Russa perdeu muita coisa e vai continuar a perder. Há agora uma aliança alargada, que vai ter a Suécia muito brevemente e já tem a Finlândia. O Mar Báltico transformou-se num mar da NATO. Há uma nova e longa fronteira de mais de 1400 km com a Finlândia e Aliança Atlântica. A Polónia, entretanto, ganhou confiança e está rearmada. 30% da frota do Mar Negro foi afundada. O risco da operação naval no Mar Negro ocidental é hoje em dia imenso e a Federação Russa já não arrisca ir para lá. Ganhou uma dependência estratégica da China, que não tinha anteriormente e tem 300 mil milhões de dólares em bens congelados no Ocidente. Este é o resultado da guerra e não é apenas a conquista de Adviivka.

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