A pandemia do coronavírus e os esforços para a combater, incluindo o ontem decretado estado de emergência, lembram-nos bem a fragilidade da nossa situação. A fragilidade dos corpos, sobretudo dos corpos velhos ou doentes, é claro, mas também a fragilidade da sociedade, um velho tema da tragédia e da filosofia política. Nenhuma sociedade escapa à consciência desta fragilidade, mesmo aquelas que mais se orgulham da sua força. Li no outro dia que os astecas, célebres pela sua prática de sacrifícios humanos, que atingiu proporções verdadeiramente prodigiosas nas últimas décadas que antecederam a chegada de Cortés, eram uma sociedade particularmente obcecada com a sua própria perecibilidade. De cinquenta e dois em cinquenta e dois anos, celebravam a cerimónia do Novo Fogo, através da qual, por meio de uma perfeita conjunção entre movimentos rituais e a posição dos astros, procuravam assegurar-se que o Sol não desapareceria do céu, levando-os consigo desta para melhor. As nossas estratégias para a preservação da sociedade, por mais que assentem em crenças largamente imaginárias e a racionalidade não seja impecável, são obviamente distintas. Em condições de incerteza e indeterminação, fixamos objectivos; deliberamos sobre os melhores meios para os atingir; ao fim de algum tempo, que não pode ser infinito, decidimos; e agimos.

Mas a fragilidade permanece entre nós, da fixação dos objectivos à acção. E a fragilidade é certamente um defeito. Indicia hesitação, confusão e conflito entre motivos contraditórios, ausência de liberdade para escolher a acção correcta. Lidando com estas questões, Kant procurou determinar, a par de três disposições ao bem, três tipos de inclinações ao mal na humanidade: em grau crescente, a fragilidade, a impureza e a maldade propriamente dita. É muito curioso que já Aristóteles havia diagnosticado a existência nos seres humanos de três características negativas: também por ordem crescente, a fraqueza da vontade, o desregramento e a maldade. Nunca consegui descobrir quaisquer relações de filiação da tese kantiana na tese aristotélica. Talvez Kant tenha chegado pela sua própria cabeça a uma opinião muito próxima da de Aristóteles, por mais diferentes que sejam os contextos filosóficos de um e de outro. E talvez que isso se deva ao facto de se tratar de uma opinião verdadeira.

De qualquer maneira, a fragilidade kantiana e a fraqueza da vontade aristotélica estão connosco. No combate ao coronavírus, por exemplo, a fragilidade é evidente. Mas, face à incerteza e ao risco, ela é praticamente inevitável. Exceptuando o pecado original deste governo, o de ter abandonado o SNS ao seu triste destino, ao mesmo tempo que celebrava mentirosamente o fim da austeridade, um tristíssimo pecado que pagamos hoje caríssimo, entre outras coisas com o sacrifício e o risco muito palpável dos profissionais que nele trabalham, confesso que o que sinto antes de mais é a fragilidade face ao imprevisto. Eu sei que há milhares de críticas justíssimas à acção do governo, a começar exactamente por não ter sabido desde o início restringir a área do imprevisível. A lista dos erros é enorme e, volto à minha, os mais graves radicam no modo descuidado como o SNS foi tratado e na tentativa de ocultar esse descuido para que ele não prejudicasse o mito fundador do governo de Costa, o fim da austeridade. Mas quando ouço a ministra Marta Temido falar agora, naquela sua estranha maneira que faz lembrar as vozes gravadas que nos autocarros nos anunciam a próxima paragem, o que me vem à cabeça é: fragilidade. Um defeito, sem dúvida, mas um defeito ainda compreensível.

De resto, há outras formas de fragilidade que andam por aí à solta e que, mesmo que menos graves do que as do corpo e das decisões e acções do governo, são mais irritantes. São casos de fragilidade mental que se encontram já próximas, na linguagem de Aristóteles, do desregramento da alma. Um caso exemplar, embora menor, é o de Jorge Torgal, porta-voz do Conselho Nacional de Saúde Pública, que, já a 28 de Fevereiro, interrogado por uma jornalista do Jornal de Notícias se o Covid-19 era perigoso, foi taxativo: “É menos perigoso que o vírus da gripe! Existe um pânico completamente desproporcional à realidade. As vítimas mortais de que se conhece o historial clínico tinham processos clínicos complicados. As outras infetadas estão a ser medicadas para a gripe, muitas delas com paracetamol. E é claro que haverá casos em Portugal, mas isso não é problema nenhum. Vivemos em sociedade, com deslocações, com convívio entre as pessoas. É uma doença que tem tratamento”. O excesso particular que leva a fragilidade, no sentido apontado antes, ao seu limite releva provavelmente aqui da simples ignorância (mesmo num “especialista”),  ajudada por uma flagrante desatenção ao mundo à sua volta (o único caso que julga preocupante é o do Irão – porque “é uma zona de guerra”). O que é de notar é a incoincidência com a percepção comum das coisas, sem que essa incoincidência resulte de uma visão mais subtil delas, porventura iluminante, antes fundando-se  naquilo que se chama egoísmo lógico: a vontade obstinada de ter razão contra a maioria.

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A ignorância não é certamente o problema que, neste caso, afecta Francisco Louçã. Num artigo do Expresso de 14 de Março, mostra que não se esqueceu de uma única linha de um livro que leu em 1867. A propósito da pandemia (mas podia ser a propósito de qualquer coisa) fulmina os privados (na saúde, neste caso) e dá largo curso ao seu sonho de um Estado omnipotente. Aqui a proximidade com o desregramento tem uma natureza teórica, o que torna o seu exemplo muito mais perigoso – porque mais transmissível – do que o anterior. E a instrumentalização da pandemia para fins políticos é levada a cabo com uma falta de vergonha absoluta. Nem por um instante aflora na sua prosa o ponto de vista dos doentes, que obviamente é preciso ter em conta quando se fala destas matérias. Tudo é mecanicamente orquestrado para marcar um ponto político e a percepção comum das coisas desvanece-se, sendo substituída por um mundo fantasmático em que as forças do Bem e do Mal se opõem desde o princípio dos tempos. Os seus discípulos do Bloco seguem-no, como seria de esperar. Assim, a “linha SNS 24 não deve ser explorada por entidades privadas”. Passando a uma maior generalidade teórica que permite sonhar com o futuro: “esta epidemia é um amplificador da crise e é reveladora da fragilidade do sistema capitalista”. Sabemos perfeitamente quais os robustos sistemas a que o Bloco aspira. Tal como sabemos que o populismo de esquerda que o caracteriza não hesita um só instante em amalgamar realidades completamente distintas como se elas se encontrassem intimamente ligadas umas às outras: “o coronavírus deve dar-nos esperança que somos capazes de enfrentar a crise climática”. Cá para mim, os bloquistas são astecas e não me surpreenderia que no seu próximo acampamento se dedicassem a uma encenação da cerimónia do Novo Fogo. Eu via bem Louçã disfarçado de Huitzilopochtli.

Mas o melhor exemplo da fragilidade levada ao limite, a entrar praticamente pelo desregramento, procede de uma muito maior sofisticação intelectual. É-nos dado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, num artigo publicado a 26 de Fevereiro em Il Manifesto. Para Agamben – e não pretendo aqui discutir aqui a sua filosofia, o que não fria sentido algum, apenas um ponto do seu artigo –, a actual pandemia não passa de uma “suposta epidemia” que o poder encena para criar um “estado de excepção” destinado à obtenção de um controle máximo sobre a população. Mais uma vez, a experiência comum é completamente posta de lado, obliterada. À falta de terrorismo, diz-nos Agamben, cria-se um “estado de medo” e um “pânico colectivo” com algo que se assemelha a uma banal gripe. Ora, esta imposição de um esquema teórico – a doutrina do “estado de excepção”com vista ao controle da população – à realidade empírica – entre outras coisas: 2978 mortos entre 31 de Janeiro e 18 de Março – é o supremo gesto de desprezo pelo sofrimento humano dos doentes e daqueles que, em circunstâncias trágicas, deles tratam. É como se Agamben repetisse à sua maneira a frase atribuída a Maria Antonieta: “Se não têm pão, comam brioches”. Brioches teóricos e sofisticadamente filosóficos, é bom de ver.

A fragilidade é generalizada, mas é preciso distinguir a fragilidade involuntária do corpo (que nada tem a ver com uma inclinação do pensamento) e da acção política (que o tem) da fragilidade voluntária e militante do pensamento, que aponta para algo de pior que ela. A declaração do estado de emergência, que traz consigo óbvios inconvenientes, sem que o seu sucesso seja garantido, bem pode revelar-se um erro, mas um erro compreensível e humano. Em contrapartida, as várias formas de fragilidade mental que acabei de mencionar contêm em si, em graus diversos, um princípio de não-solidariedade com a experiência humana comum que confina com algo pior do que a fragilidade propriamente dita. Não digo que encarnem qualquer inclinação para a maldade: encontram-se ainda, até no seu desejo de singularidade, muito próximas de nós. Mas os seus efeitos práticos tendem manifestamente para o letal. Letal para os indivíduos e para a sociedade no seu todo.