Havia o segredo de Estado; António Costa inventou uma nova figura política: a ignorância de Estado. Não sabe, por exemplo, quantos pessoas morreram em consequência do incêndio de Pedrógão-Grande, de modo a pôr termo às dúvidas. Não sabe, de facto, uma infinidade de coisas sobre a maior tragédia em Portugal nas últimas décadas: como foi possível, o que falhou, etc. Outros governos preocupar-se-iam, talvez, com esta manifestação de ignorância. Mas António Costa parece muito confortável em não saber nada.

Na imaginação popular, o poder político é frequentemente identificado com informação privilegiada. Mas não é o segredo de Estado que António Costa invoca para se abster no caso de Pedrógão Grande. É o contrário: é o direito de não saber, de não estar informado, de nada ter para dizer, de se limitar a fazer perguntas ou de esperar que outros respondam. É um direito estranhíssimo.

De facto, António Costa não diz apenas que não sabe. Diz mais: diz que, num caso que deixou quase toda a gente insegura e desconfiada, não tem de saber: “o governo não contabiliza os mortos”. Em suma, não compete ao governo estar informado e informar. Tal como não competia ao Ministro da Defesa conhecer a segurança dos depósitos de material de guerra do Estado, nem à Ministra da Administração Interna estar a par da eficiência do SIRESP. Para defender o desconhecimento, surgiu até a ideia de submeter o número de vítimas ao abrigo do segredo de justiça, o que é notável: desde quando um dado destes esteve sob sigilo, judicial ou outro, numa democracia? É fatal, num ambiente assim, que se multipliquem dúvidas e teorias da conspiração. O governo não se pode queixar.

Pela nossa parte, passamos a ter o direito de suspeitar dos motivos desta ignorância de Estado. Parece-se demasiado com uma vontade de fugir a quaisquer responsabilidades, recorrendo ao princípio mais elementar: se ninguém conseguir provar que o governo sabia, antes ou depois, então ninguém pode reclamar que o governo e os organismos que tutela deveriam ter prevenido, actuado eficazmente, ou remediado. O segredo de Estado pressupunha responsabilidades especiais da parte dos governantes; a ignorância de Estado implica que a governação é isenta de responsabilidade, mesmo da chamada “responsabilidade política”.

António Costa, como tanta gente já notou, parece fugir desesperadamente de tudo o que é má notícia. De que tem medo? Podemos admitir muitas hipóteses. É, no entanto, difícil escapar à razão mais óbvia. Este é um governo saído de uma derrota eleitoral e fundado na aliança de um partido europeísta com dois partidos anti-europeístas, isto é, críticos da democracia tal como se desenvolveu em Portugal no contexto da integração europeia. Para qualquer um dos sócios da actual maioria, a aliança só é suportável se correr bem, ou seja, se a única causa de disputa for a partilha do crédito pelas boas notícias. Ninguém alinhou nesta experiência para partilhar reveses, transtornos ou dificuldades. Daí talvez o pânico perante tudo que possa sobressaltar a narrativa da governação-enquanto-sonho-cor-de-rosa. Daí, também, a preocupação doentia com a linha editorial das televisões, notória nos comentários governamentais à compra da Media Capital, ou com o acesso dos jornalistas aos bombeiros: à ignorância de Estado convém, previsivelmente, a ignorância nacional.

Pedrógão-Grande é a maior vergonha do actual regime. Morreram dezenas de pessoas, por falhanço de um Estado que continua a falhar: passado mais de um mês, ninguém desfez as incertezas mais básicas, ninguém explicou, ninguém pediu desculpa, ninguém se demitiu, e parece que o dinheiro da solidariedade ainda está para chegar a quem precisa. Que fazer com um governo que parece que só existe verdadeiramente quando Portugal ganha o Festival da Canção?

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