No habitual exercício de comentário futebolístico a que as mais altas figuras do Estado se dedicam, o primeiro-ministro afirmou que não gostaria de estar no lugar do seleccionador nacional de futebol: “com um plantel de luxo como aquele que temos, eu não queria estar na posição do treinador; é mais fácil organizar um Governo do que escolher um onze na qualidade do plantel que nós temos”.

Há duas formas de olhar para estas declarações. Uma consiste em assinalar o dilema trapalhão, como fez Ricardo Araújo Pereira no seu programa: afinal, isto pretendia ser um elogio à selecção de futebol ou uma crítica à falta de qualidade dos membros do governo? A segunda opção é levar o desabafo de António Costa à letra e reconhecer a lucidez do primeiro-ministro: em Portugal, é realmente muito mais fácil liderar um governo do que uma selecção de futebol. Porquê? Simples: os objectivos, o profissionalismo, a exigência de resultados e o escrutínio no futebol são muito mais intensos do que na política.

Fernando Santos lidera a selecção nacional há 8 anos (desde 2014). Nesse período, venceu um Campeonato Europeu de Futebol (2016) e uma Liga das Nações (2019), os dois únicos títulos da selecção portuguesa. Entretanto, qualificou-se para todas as competições internacionais e apenas falhou uma fase final de uma grande competição (Liga das Nações, em 2021). Por duas ocasiões, foi eleito como o melhor treinador do mundo, pela Federação internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS). Ou seja, em termos de resultados, o seu desempenho tem de ser considerado elevado, num quadro de alta competitividade internacional. Contudo, nada disto impediu que, sobretudo nos últimos dois anos, Fernando Santos fosse contestado e muitos peçam a sua substituição. O caso agudizou-se agora, perante a eliminação da selecção nos quartos-de-final do mundial do Qatar. Ou seja, Fernando Santos tem a cabeça a prémio porque não colocou Portugal no patamar futebolístico mínimo de top-4 mundial.

António Costa lidera o país como primeiro-ministro há 7 anos e, pelas contas da actual legislatura, tem outros quatro anos pela frente. O histórico da sua governação constrói-se a partir de uma sucessão de erros e reformas adiadas ou revertidas. Mas venceu este ano as eleições legislativas com maioria absoluta e as sondagens ainda não lhe correm mal — o PS mantém-se o partido com a maior intenção de votos e a popularidade do primeiro-ministro supera a dos adversários. Aparentemente, os desafios nacionais não o beliscam, seja o colapso dos serviços públicos de saúde ou o crescente empobrecimento português comparativamente a outras economias europeias, como a romena. As incoerências de gestão também não o atingem, seja a instabilidade política devido às inúmeras remodelações na composição do governo ou as contradições sobre familiares no Conselho de Ministros. Ou seja, apesar dos resultados insatisfatórios, a exigência com que os portugueses (não) olham para a política permite que António Costa esteja ileso de pressões.

O contraste fala por si. Costuma dizer-se que a brincar se dizem as verdades. E, neste caso, talvez precisamente por ser uma brincadeira, António Costa não mentiu: o primeiro-ministro não gostaria mesmo nada de estar sujeito ao grau de exigência, escrutínio e prestação de contas que os portugueses impõem sobre Fernando Santos, o seleccionador nacional cuja demissão o país reclama. Portugal, no seu atraso de desenvolvimento, também é um país com este contraste: no futebol, exige-se profissionalismo, alto desempenho e decisões baseadas em provas de mérito, enquanto na política resignamo-nos perante a mediocridade. E não vale a pena olhar para o lado: como explica Rodrigo Adão da Fonseca, a culpa é nossa e só nossa — porque, enquanto cidadãos e eleitores, somos nós quem fixa tão baixos padrões.

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