As populações rurais estão a ser pela segunda vez vítimas das políticas florestais do Estado. A primeira vez foi com a arborização dos séculos XIX e XX; agora, é com a “limpeza”, depois dos incêndios do ano passado. Da primeira vez, a florestação privou os habitantes do campo do uso das serras e baldios onde recolhiam combustível e pastoreavam gado. O chamado “regime florestal” condicionou severamente a vida nos campos, limitando os direitos dos proprietários. No romance Quando os Lobos Uivam, Aquilino Ribeiro descreveu a decorrente guerra entre as populações e o Estado.

Entretanto, a população trocou os vales e as montanhas pelos subúrbios de Lisboa ou de Paris. A floresta, inaugurada pelo Estado, alastrou sem qualquer controle, sob a forma de um mato cerrado de pinheiros e de eucaliptos, cercando e apertando estradas e casas. Das antigas comunidades rurais, restam sobretudo reformados, em aldeias semi-desertas. Para estes, chegou agora uma nova agressão florestal, sob a forma técnica e legalmente discutível da obrigação de “limpar” os terrenos, sob a ameaça de multas que, para muitos, será equivalente a uma expropriação. Porque é que a história da floresta em Portugal tem de ser uma história ignóbil, independentemente do regime político?

Como já muita gente percebeu, o objectivo principal do governo é poder lavar as mãos, caso haja fogos este ano: nós mandámos limpar os terrenos, até andámos um sábado no mato, não temos agora nada a ver com isso. Mas é claro que têm tudo a ver com isso. Convém, a esse respeito, distinguir entre os incêndios e a sinistralidade dos incêndios. Os incêndios têm a ver com o revestimento florestal, o clima, etc. Talvez um outro tipo de floresta pudesse minorar as ocorrências, mas nenhuma reforma florestal nem as “boas práticas”, como se viu no concelho de Mação em 2017, extinguirão o risco dos fogos rurais – a não ser que se elimine todo o revestimento vegetal.  As vítimas dos incêndios, porém, têm a ver com outra coisa: o sistema de protecção civil. Os mortos do ano passado não foram simplesmente causadas pelo clima ou pela “desordem florestal”, mas pelo abandono e negligência dos serviços públicos, como indicam os relatórios das Comissões Técnicas Independentes. Em Outubro, por exemplo, um alerta poderia ter evitado a maior parte das mortes. A Protecção Civil falhou. Ou seja, o governo falhou. A floresta não pode servir para esconder a árvore da responsabilidade do governo.

Desmultiplicar o que se deve fazer é muito fácil: a Comissão Técnica sobre os incêndios de Outubro de 2017 começa logo por aludir à “fragilidade da nossa organização social”. É a velha tendência nacional de olhar para os problemas do ponto de vista do impossível, como dizia o rei D. Pedro V. Vamos ser claros: o objectivo não pode ser erradicar os incêndios, o que é impossível, sobretudo de um ano para o outro, mas impedir que os incêndios matem, o que é perfeitamente possível. Esta é uma responsabilidade do Estado. Não podemos exigir ao governo que evite fogos – isso, nas actuais condições do país, só a chuva – mas podemos e devemos exigir-lhe que evite mortos e feridos.

António Costa não pode continuar apenas a reivindicar louros pelo ajustamento de Passos Coelho, pelas políticas monetárias do BCE, ou pelo crescimento económico em Espanha. Tem igualmente de assumir responsabilidades pelo desempenho das funções mais básicas do Estado em Portugal. Esperamos todos que este Verão não haja vítimas. Mas se houver, não serão culpa da tia Arminda, acamada e sem dinheiro para mandar cortar o mato. Serão, como não podia deixar de ser, responsabilidade do governo.

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