1 Escrevo este texto antes de conhecer os resultados finais da primeira volta das eleições presidenciais em França. Mas, apesar de raramente ver televisão, estou a par das sondagens e inúmeros artigos que dão a Marine Le Pen resultados muito próximos de Emmanuel Macron; bem como das previsões que dão a Éric Zemmour e sobretudo Jean-Luc Mélenchon resultados bem acima dos candidatos dos clássicos partidos de centro-direita (Republicanos) e de centro-esquerda (Socialistas) — em risco de desaparecimento eleitoral.

E também estou a par dos excelentes resultados obtidos nas eleições na Hungria por Viktor Orban — que aliás conheci pessoalmente em Budapeste, quando ele ainda defendia as democracias liberais euro-americanas. Isto certamente ocorreu antes de ele ter inventado a ‘infeliz dicotomia’ (uma feliz expressão de Ralf Dahrendorf) entre ‘democracia liberal’ e ‘democracia cristã’. E certamente muito antes de ele ter apresentado a sua recente vitória eleitoral também como uma vitória contra Zelensky, o heróico líder da resistencia ucraniana contra a bárbara e primitiva invasão soviética.

Estou também a par da intensa discussão que saudavelmente tem tido lugar no livre Ocidente acerca destes alegadamente surpreendentes sucessos de tribalismos rivais, de direita radical e de esquerda radical (todos basicamente anti-atlantistas e mais ou menos pró-Putin).

2 Subscrevo naturalmente a repulsa contra a direita radical, como também contra a esquerda radical. Por isso mesmo, gostaria de apresentar uma pergunta académica: por que motivo estão ausentes no Reino Unido (antes designado pelos europeus liberais como ‘Inglaterra’) as dicotomias radicais entre extrema-direita e extrema-esquerda que hoje observamos no continente europeu?

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Por que motivo mantém os britânicos uma civilizada, ainda que cortante, rivalidade entre os ancestrais partidos Conservador, Liberal e Trabalhista — quando, no continente, os clássicos partidos das democráticas esquerda e direita (sendo ‘esquerda’ e ‘direita’ termos herdados da revolução francesa de 1789 e não familiares no Reino Unido) estão a dar lugar a partidos da direita radical e da esquerda radical?

3 Não sei responder inteiramente a esta pergunta, que considero absolutamente crucial. Mas gostaria de sugerir, como tenho vindo a sugerir em vários argumentos académicos, um elemento fundamental (entre certamente muitos outros): a cultura política marítima britânica não gosta de revoluções — e por isso desconfia dos tribalismos “anti-sistema” que alimentam revoluções e desprezam a rivalidade tranquila no Parlamento entre antigos e estáveis partidos políticos.

Talvez por causa desta crucial atitude não-revolucionária, a esquerda britânica tem sido sempre mais conservadora do que a esquerda no continente europeu; e a direita britânica tem sido sempre mais liberal do que a sua homóloga no continente.

4 Edmund Burke foi certamente um exemplo fundacional desta excentricidade da cultura política britânica. Defendeu os colonos americanos no Parlamento britânico, em plena guerra colonial anglo-americana, e a seguir condenou enfaticamente o despotismo da revolução francesa de 1789. Também Winston Churchill foi considerado no continente europeu como demasiado liberal — pela chamada direita continental — e como demasiado conservador, pela esquerda continental.

5 Churchill expressou inúmeras vezes a sua alergia às revoluções. Uma das mais inspiradoras foi a propósito da filosofia política de seu pai, Lord Randolph Churchill:

“Ele não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro [golden chain], nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida política inglesa.”

6 Poderá ser dito, com alguma razão, que estas são considerações demasiado académicas que têm vaga relevância para os dramáticos problemas políticos que enfrentamos na actualidade. Talvez.

Mas talvez também estas considerações académicas possam ajudar a valorizar a importância crucial da marítima Aliança Atlântica na defesa das democracias liberais euro-atlânticas e na crucial defesa da Ucrânia. (Talvez ainda estas considerações académicas possam vagamente estimular o interesse pela especificidade das culturas políticas marítimas — quando nos aproximamos dos 650 anos da Aliança Anglo-Portuguesa, a mais antiga aliança do mundo, ainda em vigor).