1“O país assistiu a uma série de episódios que ensombrou decisivamente a credibilidade do Governo (…) e que contribuíram para o desprestígio dos seus membros e das instituições em geral.” Presidente Jorge Sampaio, 10/12/2004

Um discurso de tomada de posse em que o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes trocou várias folhas, críticas de um ministro (Rui Gomes da Silva) a um comentador de TV (o atual Presidente Marcelo Rebelo de Sousa) que levaram à sua saída da TVI, uma central de comunicação (que mais não era do que a centralização da comunicação do Governo) e episódios da vida privada de Santana Lopes que incluíram uma sesta desmentida e férias em Ibiza.

Grosso modo, foram estas razões que levaram o Presidente Jorge Sampaio a lançar a bomba atómica da dissolução da Assembleia da República no final de 2004, provocando a queda do Governo e convocando eleições antecipadas que levaram José Sócrates ao poder com maioria absoluta — Sócrates esse que, segundo do Ministério Público, terá sido alegadamente corrompido desde o primeiro dia em que entrou em São Bento.

Passemos para o presente. Em vez de sestas e discotecas, temos uma crise de saúde pública que já matou 14.158 cidadãos — metade dos quais em 2021. No lugar de críticas a um comentador televisivo, temos uma ministra da Saúde que chama “criminoso” a qualquer crítico e que utiliza abusivamente médicos e os enfermeiros como escudo de proteção face à sua própria e exclusiva incompetência. E em vez de folhas trocadas num discurso de tomada de posse, caiu-nos na rifa um líder de Governo que nunca tem culpa de nada — ao mesmo tempo que não reforma, não planeia nem antecipa problemas e não decide com a mesma rapidez com que sacode a água do capote.

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Se o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tivesse a opção constitucional de executar a dissolução do Parlamento — que não tem por não ser possível em estado de emergência —, teria razões para tal? Isto se tivermos em conta, claro, o termo de comparação com a decisão de Jorge Sampaio em 2004.

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“Tomei a decisão (…) tendo em conta a avaliação que faço do interesse nacional. É uma avaliação (…) da exclusiva competência do Presidente da República — que a efetua em consciência e livremente, assumindo a responsabilidade apenas perante os portugueses.”  Presidente Jorge Sampaio, 10/12/2004

Têm sido várias as vozes que, criticando a incompetência óbvia de Governo de António Costa, propõem uma espécie de Executivo de emergência nacional, como Miguel Sousa Tavares ou Manuel Vilaverde Cabral. Não entrando na questão constitucional de saber se isso seria possível,  e apesar das condições serem hoje incomparavelmente muitíssimo mais gravosas — pela simples razão de que o Governo não fez tudo o que podia ter feito para evitar o desastre sanitário que o país vive e que já levou à morte de mais de 7.000 portugueses desde 1 de janeiro —, não existem condições política para o fazer por uma questão de timing.

Este é o tempo de luta, não é o tempo de substituir o Executivo.

Compete ao Governo e ao PS encontrarem soluções para o buraco em que nos meteram com a sua falta de coragem política e incapacidade de planeamento e antecipação em março (quando o vírus já cá estava), em maio (por não terem preparado convenientemente a reabertura, nomeadamente no setor do turismo) em setembro (a preparar a segunda vaga e a reabertura das escolas), em novembro (com a chegada da segunda vaga), em dezembro (por nada terem feito preventivamente quando a estirpe inglesa foi conhecida a 14 de dezembro, nomeadamente no natal) e em janeiro (quando demoraram a fechar as escolas e a decretar novo confinamento geral).

António Costa e os seus ministros cometeram todos estes erros — muitíssimo mais substanciais do que os que foram cometidos por Santana Lopes em 2004 — e terão de ser eles a resolverem o problema. Costa tem sido muito incompetente mas não é incapaz — e, apesar das semelhanças com as hesitações e amor pelo focus group que partilha com António Guterres, não vai fugir. O primeiro-ministro tem de recuperar o foco e melhorar (muito) a eficácia do seu Governo no combate à pandemia. Não há outra solução.

3 “A persistência, e mesmo o agravamento desta situação, inviabilizou as indispensáveis garantias de recuperação da normalidade e tornou claro que a instabilidade ameaçava continuar com sério dano para o país (…) que não pode perder mais tempo nem adiar reformas.” Presidente Jorge Sampaio, 10/12/2004

Verdade seja dita que não estou especialmente otimista quanto à capacidade do Governo em superar os problemas que se advinham. Veja-se o caso do ensino à distância que vai começar esta segunda-feira. Tal como o Alexandre Homem Cristo explica em pormenor aqui, o Governo falhou total e clamorosamente a meta estabelecida de adquirir mais de um milhão de computadores até setembro. Só foram adquiridos 115 mil e estarão alegadamente a caminho 335 mil computadores.

Como se não bastasse essa pequena vergonha para António Costa — o autor da promessa que é conhecido pelo slogan “palavra dada é palavra honrada —, só este domingo, pouco antes das 21h, é que o Ministério da Educação anunciou ao país que os alunos do secundário serão igualmente abrangidos pelas aulas da telescola que estará disponível no canal 444 das boxes da tv por cabo e no canal 8 da televisão digital terrestre.

Dá-se só um pequeno problema: o Ministério da Educação ainda não terá assinado os contratos com a Meo, Nos, Vodafone e Nowo, segundo noticiou este domingo o jornal digital Eco. O mínimo que se pode dizer é que essa é precisamente a definição clássica de propaganda — anunciando algo que não corresponde à realidade ou que ainda não está assegurada.

Segundo exemplo. O primeiro lote de 43.200 vacinas da AstraZeneca chegou a Portugal este domingo. A task force para o plano nacional de vacinação contra a Covid-19 anuncia à Agência Lusa a chegada das vacinas mas nada diz sobre a informação mais importante: essa vacina, que terá problemas de eficácia nas faixas etárias acima dos 65 anos, será dada a todos ou terá restrições?

O país fica a saber horas depois através de Luís Marques Mendes — mérito óbvio do comentador da SIC que muito tem ajudado a explicar a pandemia aos portugueses — que Portugal deverá seguir os 13 países europeus que impediram que a vacina fosse administrada a adultos com mais de 55, 60 ou 65 anos. O Governo deverá optar por dar este lote às forças de segurança e de socorro com idades abaixo daquelas. Quanto a uma comunicação oficial, continuamos a desconhecer seja o que for à hora a que escrevo este texto.

4 “(…) a manutenção em funções do Governo significaria a manutenção da instabilidade e da inconsistência.” Presidente Jorge Sampaio, 10/12/2004

Ficamos também a saber através da Direção-Geral do Orçamento no final de janeiro que a execução orçamental foi ligeiramente mais baixa do que o esperado pelo Governo. Ou seja, o Estado gastou menos 6,8 mil milhões de euros face à despesa total prevista no Orçamento Suplementar aprovado em julho de 2020 e menos 2,6 mil milhões de euros face à despesa total de 2020 que está inscrita no Orçamento de Estado para 2021.

É muito positivo que o PS, finalmente, se tenha rendido à evidência de que é fundamental ter as contas públicas equilibradas mas o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não necessitaria desses fundos? Não seriam úteis quando ainda por cima o SNS recebeu menos do Governo de António Costa entre 2015 e 2017 do que do Governo de Passos Coelho nos anos de austeridade de 2012 a 2014?

Parafraseando um recado do Presidente Jorge Sampaio no 25 de Abril de 2003 para o Governo de Durão Barroso, “há mais vida para além do Orçamento”.

António Costa tem a expetativa de que uma parte dos 45 mil milhões de euros da famosa bazuca europeia começará a chegar a Portugal até junho — e tudo fará para que isso aconteça na sua limitada influência enquanto presidente do Conselho da União Europeia em exercício de funções.

O problema é que os obstáculos para ultrapassar são muitos. Vão decorrer em paralelo dois processos: a análise pela Comissão Europeia dos planos de investimento de cada Estado-membro e a aprovação pelos respetivos parlamentos nacionais do Plano de Recuperação e Resilência.

Se o primeiro é suposto estar aprovado até ao final de abril — com os seus próprios obstáculos para Portugal, como pode ler aqui —, já o segundo processo é muito mais complexo. Principalmente quando a Holanda está sem Governo, a Itália tem um novo primeiro-ministro que está a formar a sua equipa e a Alemanha vai ter eleições.

5 “(…) As eleições são um elemento importante mas natural em democracia. Seria por isso incompreensível que um acto legítimo na sua convocação, fosse recebido com radicalismo ou excessivo dramatismo.” Presidente Jorge Sampaio, 10/12/2004

É por tudo isto fulcral perguntar (por muito que estejamos pessimistas sobre as respostas): o Governo está mesmo a aprender com os erros que tem cometido? Se sim, já começou a pensar e a planear não só a reabertura expetável para a segunda quinzena de março, como também o que faremos na Páscoa?

Outra questão: o Executivo tem consciência dos danos reputacionais a que Portugal foi, e está a ser, sujeito diariamente na imprensa internacional desde a segunda quinzena de janeiro? Se sim, o Governo já começou a planear e a organizar uma estratégia para limpar tais danos reputacionais para o nosso país, nomeadamente para a industria de turismo e para a capacidade de atrair investimento e residentes estrangeiro?

Não é só o facto de sermos há várias semanas o país com maior número de novos casos do mundo e dos que tiveram uma das mais altas taxas de mortalidade. É também o simples facto de um leitor da francesa Paris Match ver as fotos das ambulâncias à porta do Santa Maria, do leitor do The Times ler que o ministro da Educação proibiu aulas à distância e que a PSP interrompeu um exame fundamental dos alunos do colégio St. Dominic’s (Cascais) ou do leitor do New York Times perceber que Portugal tem um ministro da Economia que culpa os cidadãos por todos os males da pandemia ao mesmo tempo que absolve o seu Governo de qualquer responsabilidade. Todos estes factos criam a imagem de um país atrasado e que ainda não resolveu os tiques autoritários do passado.

Este é o tempo de António Costa procurar e aplicar as soluções certas para Portugal controlar a crise pandémica e, de seguida, preparar-se para combater a crise económica e social que estão, por agora, escondidas.

Se não o fizer com eficácia e sucesso, não tenho qualquer dúvida de que o precedente aberto pelo Presidente Jorge Sampaio — dissolver o Parlamento invocando episódios menores e conjunturais quando existia um Governo assente numa maioria parlamentar de dois partidos que não tinha dado qualquer sinal público de estar a desmoronar-se — permitirá ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa atuar e gerir uma futura crise política. E com muito mais razões fundamentadas para agir.

Quem com ferro mata, com ferro morre.

Corrigido nome da escola privada referida no artigo do “The Times” e frase sobre os poderes constitucionais do Presidente da República para executar a dissolução do Parlamento.