1. Uma família (quase) toda fora de portas e uma mão queimada ditaram-me uma dupla distância — geográfica e motora — do meu habitual convívio com o Observador. Em Londres não havia computador, mas se o tivesse não tinha mão direita para nele escrever. Apesar destas faltas — e como faz falta uma mão! — saboreei quanto pude a doçura de umas férias familiares, o ouvido apurado para cada andamento da gloriosa “sinfonia” Londres. Quase com mais turistas que ingleses, a cidade resplandecia ainda sem a sombra da nova investida da barbárie, no outro lado da Mancha.

Londres, seja em que circunstância, estação ou época da vida for, mas sempre estampada na sua inamovível “marca” – posta por ordem, elegante, civilizada, cosmopolita, misturada, excêntrica, criativa, solene, desapressada. Sempre me espantou por exemplo a valsa vermelha dos seus ‘Bus’ deslizando por entre a cadência ritmada do trânsito ou a proeza que só ali vejo dos táxis rodando sobre si mesmos em inversão de marcha nas mais acanhadas ruas, sem que se ouça um insulto ou sequer uma buzinadela, talvez nem se usem buzinas. Capazes disso são os ingleses, sempre tão peculiares.

Voltei aos museus imensos (e imensamente aquecidos, só em Portugal é que há frio), ao comércio pujante, tão depressa ultra conservador como imaginativamente alternativo — às vezes não se percebendo mesmo de onde sai o “recheio” de um e de outro, tão insólito pode ele ser; aos mercadinhos de rua, ajoujados de “preciosidades” sem idade ou de velharias com charme; aos festivos e ensolarados parques – oito dias cheios de luz – com os termómetros a registar as mais baixas temperaturas desde há décadas – mas que importância, com um sol tão radioso e raro (sob o qual circulavam a altíssima velocidade as trotinetas dos netos).

E depois, naqueles lugares aconchegados, misto de bistrot e “café”, onde era óptimo começar o dia devorando a imprensa antes de qualquer outra coisa diante de um “ double expresso, ia-me apercebendo da cor dos dias e dos seus variados episódios: a confusão instalada nos hospitais públicos pela procura das urgências devido ao frio, a corrida aos saldos, a lista dos “distinguidos” pela Rainha no final deste ano, o caos nos comboios suburbanos na véspera do “reveillon”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Apesar da política abrandar no Natal, dei-me conta, uma vez mais de resto, das desavenças entre Cameron e Clegg ao pé das quais as vicissitudes que se diz existirem entre Passos e Portas são de chocolate, como aqueles graciosos chapelinhos de chuva que se dão às crianças.

Edward Miliband, líder dos Trabalhistas, vive dias penosos na oposição, o que não é novidade mas deve ser desencorajante: “How do you solve a problem like Ed Miliband? ”, perguntava um articulista enquanto noutro jornal, um cronista que revia a matéria política de 2014, considerava “the Labour leader mistakenly believes that his predecessor’s (Tony Blair) policies are outdated – but he himself is out of touch”. Dias antes Blair dissera em voz audível que Miliband faria melhor em não cuidar apenas da sua “left wing” e ainda melhor em começar a acautelar o seu flanco direito. (“I am convinced the Labour party suceeds best when it is in the center ground”). Miliband acusou-o inutilmente de estar “datado”, ignorando eu — e os ingleses em geral, a começar pelos “seus” — como pode tão desinteressante criatura ganhar as próximas eleições, mesmo tendo em conta que há uma metade de Cameron que é de plástico.

Um dia tive que ir à agência de um grande armazém à caça de bilhetes para um espectáculo, mas o espectáculo afinal foi lá dentro. A época desaconselhava a incursão, a “casa” rebentava de turistas afogados na vertigem em que automaticamente caem os mais inesperados seres humanos diante de tabuletas que dizem “sale 50/70%”. Fui salva por um empregado, inglês. Imperturbável na indescritível confusão de pessoas e coisas que o submergiam, sem nunca elevar o tom de voz, nem lhe ocorrer a sombra de um comentário sobre a ruidosa desordem vigente, cuidou de mim como se eu fosse o único ser vivo da terra. Abriu uma gaveta, tirou um mapa, estudou-o com zelo, “its not easy”. A sua explicação foi porém tão profissional que, após um corpo a corpo com escadas rolantes e corredores onde se atropelavam multidões enfurecidas, aterrei num ápice nos bilhetes que já não havia.

No dia seguinte, outro grande armazém foi evacuado em minutos porque um rapaz de vinte anos caíra do último andar para o rés-do-chão (não morreu, tendo porém os vigilantes “desconfiado” que pudesse ter sido empurrado). Mas a coreografia que se seguiu só podia ter sido dançada ali: seguranças, polícia, ambulâncias, Scotland Yard moviam-se como quem segue uma mão invisível, enquanto a casa se esvaziava ordeiramente. Eu pelo menos não conheço gente como esta, fora desta singular geografia. Conforta-me aliás a absoluta certeza que a cada vez que regresso, reencontro esta específica natureza humana igual a si mesma. Em Inglaterra não se muda nada, muitos menos os ingleses.

Estes triviais flashes que hoje aqui deixo — mas quando a vida me oferece o usufruto inocente da trivialidade é melhor dizer-lhe que sim — variaram obviamente de registo e de tom ao longo das inúmeras vezes que visitei a capital britânica e até Thatcher “interveio” num desses relatos. O que se manteve porém sempre inalterável e intacto foi o meu pasmo — para o bem e para o mal, de resto — com os ingleses. Neste amável e afável entre parêntesis familiar, voltei a reeditar esse pasmo.

2 – O que se seguiu em Paris não foi amável. Subiu-se outro degrau. E não só no domínio abstrato do “indizível” ou naquele bem mais concreto do medo, mas na simples, clara, frontal luta entre civilização e barbárie. Percebendo que o que há a dizer hoje, e já, é que “somos todos Charlie” porque é preciso que o mundo oiça um urro de rejeição a uma só voz, não tenho a certeza de sermos todos Charlie porque sei uma coisa: não me é indiferente que se troce corrosivamente da religião que professo, dos que a praticam e dos que a exercem, mesmo se uns e outros erram ou prevaricam.

Não rio de cartoons sulfúricos ou obscenos (na exatíssima medida, aliás, em que também não rio de qualquer outra religião e dos seus crentes.) Faz parte da civilização onde nasci, onde moro, cujas coordenadas sigo naturalmente e cujos valores partilho com o quase automatismo de quem respira. E nesse sentido a “culpa” não é minha nem desta civilização, e não vou deixar que o seja, recusando-me a assumir culpas erradas ou as “interpretações” demenciais ou totalmente ao viés que tenho ouvido e mesmo se tudo é mais complicado que este apressado desabafo.

(Temo por exemplo que a palavra “minorias” sempre evocada para classificar, explicar ou às vezes redimir – é conforme – este estado de coisas, qualquer dia caia em desuso. Basta só pensar na Nigéria, Sudão, Somália, Síria, Iraque, Paquistão, Afeganistão, e nas matanças, “em curso”, numa barbárie instalada ou mesmo oficializada, para não ter a certeza do uso, folgado, do termo “minorias”.)

Seja como for, teria sem sombra de hesitação ido para a rua, para todas as ruas, comungando do mesmo luto e da mesma raiva, enrolada na bandeira da “diferença” da minha civilização: quando certas caricaturas ou atitudes versando a religião católica me incomodam não agarro numa arma e quando delas discordo, não a disparo. Usufruindo da minha própria liberdade de expressão limito-me a sinalizar – ou não – desconforto ou discordância. Mas a barbárie é mais lesta, dispara, exclui e aniquila. Preparemo-nos para a incerteza, forma superior de aflição. E da manifestação de ontem em Paris retenhamos o que deve ser retido: a extrema “eficácia” política do atentado contra o Charlie Hebdo, teve resposta -hipócrita porventura em algum sentido – mas igualmente eficaz. Mas, sim, preparemo-nos para a incerteza.

3– Conheço bem Miguel Albuquerque. Conheço-lhe as estonteantes rosas que cultiva amorosamente numa quinta da Madeira — é frequentemente convidado para integrar os júris mais prestigiados do mundo em concursos de rosas — os dotes musicais, o talento desportivo, o humor; a irreverência por vezes excessiva, o amor a vida e às suas coisas boas – por vezes excessivas, ambas. Felizmente para ele, um avô militar introduziu alguma (boa) disciplina sua “forma mentis” e ensinou-o a distinguir o trigo do joio.

Mas o que me interessa registar hoje é que ele é sobretudo um político. De corpo inteiro: faro, intuição, vontade, instint killer, paciência. Como todos os que gostam de si mesmos, Miguel Albuquerque, para o bem e para o mal, confia em si. Tem ambição e não lhe falta coragem política: não era qualquer um (em trinta e sete anos aliás, nunca houve nenhum) que afrontaria e depois defrontaria – sozinho – um dinossauro todo-poderoso, habilíssimo, carismático, e com obra feita como era “o Alberto”. Foi há quase três anos e depois disso ele foi tecendo diariamente a sua teia no PSD — e fora dele — como uma aranha meticulosa. “Vamos ganhar isto”, dizia-me de cada vez que o encontrava. Em suma, os ingredientes de que é feito o novo líder político são os adequados, mas a poíitica é arte difícil e pode ser traiçoeira, como o mar que passa de azul liso, a cinzento tempestuoso.

Num péssimo momento da vida política, económica e social da sua “terra”, Miguel Albuquerque vai ter de ser capaz de coisas difíceis: passar do frenesim da contenda eleitoral que tanto o motivou para a serenidade consistente da liderança; trocar a adrenalina do comício pela solidão da decisão; e o fervor da luta pela sabedoria de impor e conduzir uma equipa; passar da leveza das palavras – “leva-as – o – vento” para a exigência de verbos e actos, medidos e pesados. Será ele capaz por exemplo, dessa prioridade maior que é dizer ao “povo” do PSD que acabou definitivamente o tempo da subsidiodependência, da cunha e da influência do “partido” — no emprego, no tacho, no negócio, na benesse, no jeitinho, na obtenção de uma “facilidade” — e que começou uma nova cultura onde ética e responsabilidade têm de significar alguma coisa?

E finalmente, usará ele daquela coragem lúcida para, nas eleições que se avizinham, dizer aos madeirenses que os tempos são duros e com amanhãs pouco cantantes no horizonte?

Para já conseguiu uma coisa absolutamente notável: fez crer ao arquipélago que tudo tinha radicalmente mudado, do PSD, à vida dos madeirenses. Como se durante estes últimos trinta e sete anos (!) não tivesse sido o mesmíssimo PSD que estivesse estado ao leme daquele mar.

O mais extraordinário, porém, é que parece verdade. Aliás quem lá for pode quase fisicamente constatar o ambiente de descompressão destes novos dias. E de caminho atender ao que saiu deste Congresso do PSD ou reparar nas votações parlamentares entretanto já ocorridas, onde na votação de algumas matérias de interesse regional se logrou uma unanimidade nunca ali praticada.

Um assunto a seguir sem dúvida nem fastio. A Madeira não merece a primeira e Miguel Albuquerque dispensa o segundo.