Sou capaz de compreender que, no espírito do governo e do primeiro-ministro, paire a ideia de que é necessário começar a retomar a normalidade possível, para que os efeitos da cura da pandemia da Covid-19 não sejam mais gravosos do que os da própria doença. Desse modo, um quarto estado de emergência sucessivo assinalaria à sociedade que estávamos ainda como há um mês e meio, levando a que as pessoas dificilmente se convenceriam de que, com algumas cautelas, poderiam começar a retomar as suas vidas.

Por esse motivo, o governo de António Costa pôs fim ao estado de emergência e declarou o «estado de calamidade», com vigência a partir do dia 3 de Maio, como fase de transição temporária para uma situação de normalidade, mantendo ainda algumas medidas restritivas de certos direitos fundamentais. Entre elas, o “confinamento obrigatório” para certas pessoas; o “dever cívico” (?) “de recolhimento obrigatório” geral; a “proibição de ajustamentos com mais de 10 pessoas”; e “a proibição de celebrações religiosas”.

Acontece que Portugal é um Estado de direito, onde devem prevalecer o princípio de legalidade e a obediência dos órgãos de soberania à Constituição. Esta última garante aos seus cidadãos, como é próprio de todas as Leis Fundamentais, um conjunto de direitos irrenunciáveis, alguns deles absolutos e outros que só em circunstâncias muito especiais podem ser suspensos. Essas circunstâncias são, segundo o artigo 19º da Constituição da República Portuguesa, aquelas que precisamente podem levar à declaração do «estado de sítio» ou do «estado de emergência», dizendo expressamente, o nº 1 desse artigo, que: «Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição».

Por sua vez, o «estado de calamidade», agora declarado pelo governo, não é uma figura com recorte constitucional. Ele encontra-se desenhado na Lei n.º 27/2006 — a Lei de Bases da Protecção Civil –, uma lei ordinária da Assembleia da República que, na hierarquia das leis do Estado, deve obediência à Constituição. Trata-se, por isso, de um instituto concebido para circunstâncias especiais, geográfica e temporalmente muito limitadas, de forma nenhuma com abrangência nacional, e para dar resposta a situações de emergência repentina e de duração previsível, como incêndios, inundações, tremores de terra, etc.. Por isso, e no seguimento do disposto na Constituição, o «estado de calamidade» não pode suspender direitos fundamentais, mas somente limitar o seu exercício de forma muito temporária e apenas na parcela geográfica do território nacional afectada pela calamidade que originou a sua declaração (art. 21º, nº 1, al. b)). Eu diria, portanto, que se uma calamidade atingir, de forma grave, a totalidade do território nacional e se, consequentemente, for uma potencial ameaça para todos os cidadãos, a figura necessária para lhe dar resposta é, precisamente, a do «estado de emergência». O tal que António Costa se recusou a aceitar pela quarta vez sucessiva.

A situação que teremos, a partir do dia 3 de Maio, independentemente da bondade das intenções, é, por isso, manifestamente inconstitucional. Manterá a suspensão de direitos fundamentais, sem o fazer por via de nenhuma das duas figuras constitucionalmente previstas para esse fim, mas apenas por decisão unilateral do governo. Permitirá que as autoridades de segurança pública impeçam os cidadãos de exercer alguns dos direitos fundamentais constitucionalmente tutelados, que ficarão suspensos até nova ordem governamental. Ora, a democracia carece do Estado de direito e este, por sua vez, não sobrevive sem o respeito pela Constituição, o que, manifestamente, o governo português não está a fazer.

A partir do dia 3 de Maio de 2020 entraremos, pois, num verdadeiro estado de suspensão constitucional.

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