Depois da paragem imposta pela Covid-19, é tempo de voltar à eutanásia, questão que justamente inquietou o país. Porquê questionar o “tempo de morrer”, que é, com o “tempo de nascer”, o mais delicado da existência humana?

Alheios ao “tempo de nascer”, pretende-se que possamos ser, licitamente, responsáveis pelo tempo de “morrer”.

O fundamento apresentado é o da legitimidade da ambição humana de mourir vivant, exaltado pelo “direito a morrer com dignidade”.

“Morrer lúcido”, com o menor sofrimento possível, na tranquilidade e conforto da íntima harmonia familiar, social e espiritual, remete para o respeito pela essência da condição humana enquanto conquista civilizacional.

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O mesmo respeito imporá a legitimidade de doentes que, em sofrimento extremo e intolerável, com “lesão definitiva, incurável e fatal à luz dos actuais conhecimentos médicos”, vejam legalizada a decisão, assumida na maior intimidade da consciência individual, da não continuação desse infortúnio. Todavia, a legitimação deste princípio só poderá ser moralmente aceitável depois de concretizado o pleno cumprimento do anterior.

“Porque os doentes não são números”, concordar-se-á que decisões individuais desta magnitude, só poderão ser assumidas por pessoas lúcidas, conscientes, plenamente informadas e solidamente esclarecidas acerca de meios e condições que lhes permitam exercer, responsavelmente, a opção do “direito de escolha”.

Por ser apenas a análise objectiva de “princípios” que me move, direi que se teria imposto uma ampla campanha  pedagógica, motivadora de larga mobilização informativa dos cidadãos, para esclarecimento  dos “tempos e modos” do dossier Eutanásia, que tivesse permitido à generalidade dos Portugueses claro e preciso conhecimento sobre razões e significados conceptuais vigentes na legislação, como são as tão referenciadas situações de Distanásia, Do Not Resuscitate (DNR), Testamento Vital, Recusa de Tratamento (RDT), Suicídio Assistido e Eutanásia,  Redes de Cuidados Continuados e Paliativos.

Só o pleno conhecimento destes instrumentos legais poderia conduzir à formação de sustentada e esclarecida opinião individual, cuidado que anteposto à legislação reforçaria a dimensão ética da legitimidade política. É certo que houve múltiplos debates que terão dado aos deputados a convicção de um debate alargado e profundo. A verdade, é que se muitos médicos continuam a não ter clara a distinção entre Suicídio Assistido e Eutanásia, perceber-se-á o grau de (des)conhecimento dos Portugueses nesta matéria. Mais do que em qualquer outra situação não basta “pensar que se tem razão” e penso também que “princípios” do foro mais íntimo da individualidade do “eu” e da consciência individual não devem ser referendáveis, como é o caso da Eutanásia.

Reconheço plena legitimidade política da Assembleia da República para legislar sobre a despenalização da Eutanásia mas, atendendo a que o tema não constava na maioria dos programas avaliados nas urnas, será que os senhores deputados entendem que à luz da ética republicana têm igual legitimidade moral para legislar sobre a matéria?

“Não sei como fazer”, mas julgo saber como “não deverão ser feitos” alguns dos “tempos” que estão a ser impostos nos articulados previstos nos projectos-lei já aprovados na generalidade. Esses textos referem que, além do doente e do médico assistente, estarão envolvidos no processo as – agora “criadas para o efeito” – Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte (CVA) e “uma nova equipa” da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) com o recente instrumento de Registo Clínico Especial (RCE).

Note-se, que a aprovação na generalidade dos projectos-lei apreciados no Parlamento, à revelia dos “pareceres negativos” das ordens profissionais dos Médicos, Enfermeiros e Advogados faz com que a despenalização da Eutanásia tenha saído do âmbito do Direito, da ciência médica, da moral e da ética para se reduzir à esfera, pura e simples, da dimensão política.

Atente-se, desde logo, no esquecimento do princípio essencial de que a Eutanásia não é um Acto Médico. Este “esquecimento” vicia o modus operandi, decretando a ilegítima pretensão de fazer com que o médico assistente do doente passe, de “Orientador”, a “Executor” da “morte a pedido”, violando todos os “princípios e pilares” que fundamentam o sine qua non do Código de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos. Princípios, fundamentos e ideais que não podem ser vistos como opiniões, nem podem ser alterados ao sabor de ventos e marés.

Não esquecendo a minha posição a este propósito, admitia que os parlamentares fossem os primeiros a diligenciar mecanismos tendentes à obtenção do conhecimento que, através da “audição directa”, lhes permitisse informação concreta do pensamento dos cidadãos, a quem dão voz na Casa da Democracia, sobre como gostariam de ver gerido o seu fim de vida. Um dos mais ilustres e interventivos deputados nesta matéria afirmou, e cito, que “invocar o referendo à Eutanásia é uma mera manobra política, uma golpada”. Porque não se empenharam os deputados em garantir um eficaz esclarecimento dos cidadãos? Face às circunstâncias, não residirá a tal “golpada” no aproveitamento oportunista de um momento conjuntural para legislar à pressa?

Subscrevo a posição de um médico, destacado responsável por um dos textos políticos aprovados, que diz não perceber a oposição dos médicos, pois “a atitude médica na eutanásia é idêntica à da baixa por doença”. Num caso, como noutro, deve cumprir ao médico assistente, na sequência do diagnóstico, atestar o estado da condição clínica do doente, fundamentando o seu “estado de sofrimento”, e elaborar o requerido atestado médico. E por analogia com “o processo de baixa por doença”, a intervenção clínica dar-se-ia aqui por terminada.

Mas não deveria o médico assistente, no respeito pela relação médico-doente, assumir, neste contexto, uma posição mais interventiva, por analogia com a Justiça, de “provedor”? Não sendo a Eutanásia um acto médico, é ilegítima a intenção dos decisores políticos de quererem transformar o médico assistente, orientador, no executor da morte do doente que acompanhou na doença. Enquanto “provedor do doente”, o médico orientador seria o pivot agilizador, assegurando o cumprimento dos critérios que garantissem o rigor e a segurança do procedimento, certificando o respeito pela vontade expressa do doente quanto a tempos e modos de antecipação da morte assistida.

Voltando ao respeito pelos “princípios”, penso que a situação se resolveria através de um simples procedimento administrativo. Os elementos constituintes da Equipa da IGAS, servidores da república na prestação de um cuidado ao serviço do bem comum, comprometem-se a cumprir “com honra e lealdade as funções que lhes são confiadas”, vendo a sua intervenção regulada pelo Código de Honra da Administração Pública, saindo, por isso, da jurisdição dos seus próprios Códigos de Ética e Deontologia Profissionais. A forma administrativa mais apropriada será, na minha opinião, atribuir a um dos membros dessa Equipa da IGAS a missão de proceder à antecipação da morte do doente, acto que cumpriria sob superior supervisão dos restantes.

Dirão que não proponho mais que uma “habilidade” política. Admitindo que o possa ser mas, ao não violar nenhum preceito dos Códigos de Ética e Deontologia, seria um reforço substantivo da há muito conhecida, clássica e sempre actual, “it´politics stupid!”

Sabemos que Portugal não dispõe ainda de uma sólida e suficiente rede de acesso universal a Cuidados Continuados e Paliativos, que permita a vivência desses ambientes e, assim, a livre, consciente e responsável opção individual de escolha. Sem os cuidados desse considerável avanço civilizacional, o que a despenalização da Eutanásia está a oferecer aos Portugueses não é mais do que a opção entre um devastador e intolerável sofrimento e a antecipação da morte, com o desrespeito devido à dignidade da condição humana.

Não é, afinal, mais do que a livre escolha entre “duas opções do nada”.

Terão assim razão, os que agora dizem não nos devermos preocupar com “rampas deslizantes e mortandade de velhos”,  mas à afirmação de que “os pássaros não são estúpidos”, responderei que os Portugueses são inteligentes e, apesar do displicente abandono a que tem sido votado o SNS e das  gritantes insuficiências das Redes de Cuidados Paliativos e Continuados, saberemos encontrar, com discernimento, soluções responsáveis e coerentes.

Entre a tão propagandeada necessidade de terminar com o “encarniçamento terapêutico” – descabida,por há muito ser reconhecida como “má prática clínica” -, recordo Daniel Callahan quando dizia que “stop treatment will cause the patient´s death, as opposed to a lethal drug will give death no matter who”, para ilustrar a diferença entre “deixar morrer e fazer morrer”.

Por se tratar da questão maior que é o “fim de vida e a morte”, tendo a compreender a interrogação popular que tenho visto formulada: estará o Estado genuinamente preocupado com a defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias dos seus cidadãos ou, apenas, a favorecer perversamente o caminho mais simples, fácil e barato para o problema do fim de vida?

Esta é uma das mais pertinentes questões em que “mais que ter, importa conhecer” a razão exigida à “mulher de César”.