Num momento memorável da Guerra Fria entre a Rússia soviética e os Estados Unidos, o Presidente Kennedy, em 1963, declarou, no coração dividido de uma Alemanha dividida: “Eu sou Berlinense”. Não podemos nós hoje repetir esse gesto e afirmar solidariamente que somos todos bielorrussos? Poder podemos, mas convém tentar perceber as implicações. E tenho por regra procurar que as minhas preferências pessoais não afetem a minha análise.

A este respeito importa começar por notar que quando Kennedy fez essa famosa declaração de solidariedade não se limitou à mera retórica. O presidente dos EUA quis deixar claro que as tropas e aviões norte-americanos que já estavam na metade ocidental de Berlim não sairiam da zona que defendiam. Mais, qualquer ataque a essa zona livre da cidade seria considerado um ataque aos EUA e aos seus aliados da NATO. É evidente que ninguém na Europa ou nos EUA está hoje em condições de fazer de forma credível o mesmo tipo de promessas relativamente à Bielorrússia. A Bielorrússia é Europa, mas é uma Europa muito oriental. O que podem fazer a União Europeia, os seus Estados membros, o Ocidente em geral?

Reconhecer a realidade geopolítica

O Ocidente pode começar por seguir o exemplo dos próprios bielorrussos que heroicamente se manifestam nas ruas. Eles querem o fim da ditadura no seu país, mas percebem bem que não podem dar-se ao luxo de ignorar os constrangimentos da sua situação geopolítica. Viram o que se passou recentemente na Ucrânia. Sabem que vivem numa região onde ignorar a geopolítica se paga frequentemente muito caro, com muito sangue e muitos mortos. Sabem que, na história, raramente tiveram a opção de ter um Estado próprio. Muitas vezes foram arrastados para conflitos entre Estados vizinhos mais poderosos que acabaram por repartir o seu território, ignorando os desejos da população local. Basta pensar que só no último século o território da atual Bielorrússia pertenceu ao Império dos czares, foi linha da frente da Primeira Guerra Mundial e foi ocupado uma primeira vez pela Alemanha. Depois foi disputado entre vários atores e acabou repartido entre a União Soviética e a Polónia. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi violentamente ocupado pela Alemanha Nazi, para regressar, logo depois, aos braços da União Soviética, escravizada por Estaline, antes de se tornar independente com a dissolução desta última, em 1991.

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Ainda hoje a Bielorrússia vive numa grande dependência económica de Moscovo. E até faz parte, formalmente, de um “Estado Unido” com a Rússia. Esta vaga federação ou confederação dá ao Presidente Putin mais uma cobertura possível para a opção que tem preferido, prudentemente, sempre que possível, de intervir em países vizinhos, mesmo militarmente, sem os invadir abertamente e ocupar totalmente.

Certamente conhecedores de tudo isto, os opositores a Lukashenko têm procurado garantir que não há bandeiras da União Europeia nas suas manifestações contra o regime ditatorial, apenas bandeiras nacionais. Por isso, os líderes da oposição não se têm cansado de repetir que não são hostis à Rússia e que não pretendem a adesão à União Europeia ou à NATO.

Procurar um acordo de transição envolvendo a Rússia

A União Europeia deve, por isso, no que depender dela, procurar um acordo de transição de regime envolvendo a Rússia, que, para o bem e para o mal parece ser um ator incontornável nesta região. Um facto que a própria oposição parece reconhecer. Uma possibilidade seria tentar um acordo em que os líderes da oposição se comprometessem a não pedir a adesão à UE ou à NATO. Em que se comprometessem com a continuação de relações amigáveis com a Rússia. Em troca a União Europeia poderia ajudar a Bielorrússia a sair das suas grandes dificuldades económicas e ter mais condições de pagar as suas dívidas substanciais à Rússia.

Ou seja, menos declarações públicas grandiloquentes e mais diplomacia discreta de bastidores, em que a União Europeia, Estados europeus com grande peso económico na Rússia, como a Alemanha, e os próprios EUA, poderiam apresentar esta crise como um teste decisivo à possibilidade de um processo de melhoria gradual de relações com Moscovo. Uma melhoria que passaria por o Ocidente reconhecer alguns dos interesses russos na sua vizinhança próxima, desde que isso fosse feito no respeito pelas fronteiras e pela autonomia da organização política interna dos Estados vizinhos. Não será fácil. Mas não é impossível. A história mostra-nos que foi possível fazê-lo, por exemplo, na Finlândia ou na Áustria, durante a Guerra Fria. E não sendo o ideal, é melhor do que um banho de sangue inútil.

As muitas dúvidas e algumas certezas na crise da Bielorrússia

Há pouca coisa que se possa dar como certa numa crise como esta. Uma intervenção militar da União Europeia ou mesmo da NATO parece inconcebível, até porque levaria a uma reação militar da Rússia. É certo que o próprio Lukashenko diz acreditar na possibilidade de uma intervenção militar ocidental para o derrubar, mas para se tentar apresentar na sua propaganda como defensor da pátria e não apenas do seu poder pessoal. Uma intervenção russa de apoio ao atual regime bielorrusso (com quem Moscovo teve divergências várias) é provável, mas mesmo essa intervenção, e sobretudo a sua modalidade concreta, também não é certa. Seria decisiva uma mudança na posição de apoio ao regime, durante todas estas semanas, das Forças Armadas e das Forças de Segurança bielorrussas. Mas não há, até ao presente, indícios de que as forças da ordem vigente bielorrussa estejam dispostas a abandonar o regime que os tem recompensado pela sua lealdade, até por temor de punição.

Infelizmente, do que também podemos estar certos é que um regime autoritário não cai apenas por haver um descontentamento popular significativo, por muito apoio retórico que tenha do exterior. Isto fica claro mais uma vez na Bielorrússia. Se não houver uma divisão nas elites, e, sobretudo, se grande parte ou a totalidade das Forças Armadas e das Forças de Segurança do Estado se mantiverem leais ao ditador e disponíveis a usar a força que for necessária para reprimir, uma ditadura não cai. Ora, parece provável que a Rússia tenha nestes meios mais influência que o Ocidente. Na Bielorrússia esboçou-se, é certo, uma alternativa interessante: a combinação de manifestações com greves generalizadas. Mas estas últimas parecem estar a ser difíceis de manter durante um período longo, por razões de sobrevivência económica e face à repressão dos organizadores. É também esta a razão que torna as sanções económicas generalizadas contra este tipo de regimes tão problemáticas. Estas últimas não atingem apenas ou sobretudo o regime, mas sim a população civil, sobretudo a mais vulnerável, que os ditadores podem ignorar impunemente.

Face a tantas incertezas a União Europeia, os países europeus e ocidentais devem ser prudentes. A prioridade não pode ser fazer declarações bombásticas e taxativas que ficam bem nos jornais, mas nada alteram no terreno. Assistirmos mais uma vez ao espetáculo de o Ocidente exigir a saída de um ditador, que anos depois continua no poder, como sucede na Síria ou na Venezuela, no meio de catástrofes humanitárias para milhões de pessoas, não fará nada para dar credibilidade à promoção da democracia pela União Europeia. Ainda hoje os responsáveis norte-americanos que encorajaram a revolta na Hungria, em 1956, contra a ditadura pró-soviética, são criticados por terem criado falsas esperanças que acabaram num banho de sangue. Convém não esquecer que a única coisa absolutamente certa no desfecho desta crise é que quem pagará o preço do seu desfecho, seja ele qual for, será a população da Bielorrússia.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

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