1 O primeiro-ministro António Costa tem produzido várias declarações sobre o livro “O Governador”, da minha autoria, desde que o mesmo foi lançado em novembro. No dia 16 de novembro, por exemplo, e a propósito de um evento comemorativo dos 100 anos do escritor José Saramago, afirmou que aquele era o “pior dia para falar de um livro que a cada página que se vai conhecendo se percebe que é um conjunto de mentiras, meias verdades e deturpações”.

O deputado Joaquim Miranda Sarmento dirigiu 12 perguntas ao primeiro-ministro no dia 23 de novembro de 2022. Praticamente dois meses depois, o dr. António Costa ordenou que fossem enviadas as respostas — que, uma vez mais, pretendem colocar em causa o conteúdo do livro que escrevi.

Mesmo compreendendo que a atividade política se baseia muito na criação de narrativas e que o meu livro (como sempre disse) não representa uma verdade absoluta, não é menos certo que todas as críticas devem ser feitas com respeito pela verdade material.

Dito isto, e enquanto autor do livro, gostava de constatar vários factos.

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O primeiro facto a constatar é que o dr. António Costa cai numa clara contradição entre o que escreve nas suas respostas e o que escreveu num SMS para o dr. Carlos Costa no dia 10 de novembro de 2022.

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Explicando. No livro é relatada uma reunião entre o então governador e outros responsáveis do Banco de Portugal e Isabel dos Santos e Fernando Teles, ambos acionistas do então BIC (futuro EuroBic) que ocorreu a 12 de abril de 2016. Na mesma, o governador anunciou duas decisões:

  • tinha de ser apresentada uma nova lista para a administração (a que tinha sido apresentada não cumpria as regras do Fit & Proper do BCE)
  • a própria filha de José Eduardo dos Santos e o seu sócio tinham de se afastar do board do banco por suspeitas da alegada prática de branqueamento de capitais e devido à proximidade com o poder político angolano.

No mesmo dia 12 de abril de 2016, muito pouco tempo após essa reunião, o primeiro-ministro ligou para o telefone do governador a dar-lhe conta do seu desagrado pela ação do Banco de Portugal contra Isabel dos Santos — que tinha contestado a mesma em alto e bom som durante a reunião com Carlos Costa.

Estes factos fazem parte da pré-publicação no Observador do capítulo 27 d’ “O Governador” intitulado “A nega do governador à ‘filha de um presidente amigo de Portugal’”. Cerca de uma hora e meia após essa pré-publicação, o dr. António Costa enviou um SMS para o dr. Carlos Costa, que já foi revelado publicamente.

Ora, o contexto desse SMS é claro porque o primeiro-ministro nega que tenha afirmado que “não se pode tratar mal a filha de um presidente amigo” mas confirmou a conversa, acrescentando que transmitiu ao governador a “inoportunidade da medida” de afastar a filha de José Eduardo dos Santos face ao “acordo que tinha sido possível alcançar para libertar o BPI da participação da engenheira Isabel dos Santos”. Mais claro é impossível.

3 O segundo facto a constatar é que o primeiro-ministro António Costa considera que o cumprimento das regras europeias do Fit & Proper e da própria lei portuguesa de combate ao branqueamento de capitais por parte do Banco de Portugal não é um princípio e uma obrigação legal.

Mas sim um alegado instrumento de sabotagem do acordo que foi alcançado entre o Caixa Bank, principal acionista do BPI, e Isabel dos Santos para que a empresária angolana saísse do BPI e o banco português reduzisse a sua participação no Banco Fomento Angola. Este, sim, era o bem maior a preservar — e não o cumprimento da lei.

Não é a primeira vez, aliás, que o dr. António Costa aplica a ideologia do bem maior nas relações entre Portugal e Angola. Entre 2017 e 2018, as relações económicas entre Portugal e Angola estavam em causa devido à acusação do Ministério Público contra Manuel Vicente (ex-vice-presidente de Angola) pelos crimes de corrupção ativa na forma agravada, branqueamento de capitais e falsificação de documento.

Essa acusação, segundo o dr. António Costa, era o “único irritante” que colocava em causa o tal bem maior — que foi preservado com o envio da acusação contra Vicente para Luanda, numa decisão judicial polémica.

Por isso mesmo, é importante recordar (porque não é demais enfatizar) o que está em causa no caso EuroBic: além do problema central de o banco não cumprir em 2016 os procedimentos preventivos de branqueamento de capitais que o Banco de Portugal impunha (e impõe), a própria Isabel dos Santos já era suspeita de várias operações de alegado branqueamento de capitais que tinham sido comunicadas pelo Ministério Público e pela Unidade de Informação Financeira da PJ.

4 O terceiro facto a constatar é que uma parte das respostas da dr. António Costa dificilmente têm adesão à realidade dos factos. Para já, dou apenas um exemplo relacionado precisamente com o problema de branqueamento de capitais que envolvia (e continua a envolver) Isabel dos Santos.

Compreende-se que o dr. António Costa se queira afastar desse tema. Para tal, basta recordar a importância do caso Luanda Leaks e perceber que a empresária com quem o primeiro-ministro falava é hoje suspeita em 17 inquéritos criminais em Portugal.

Daí que o primeiro-ministro diga que só tomou conhecimento a “13 de abril” de 2016 de que Isabel dos Santos “estava a pôr em causa o acordo a que os acionistas do BPI tinham chegado em 10 de abril” devido a “uma intervenção do governador do Banco de Portugal relativa ao EuroBic (…)”.

Mas a verdade é que foi no dia 12 de abril de 2016 que o dr. António Costa tomou conhecimento do que apelida de “intervenção” do Banco de Portugal. Porquê? Porque Isabel dos Santos (ou alguém em seu nome) contactou António Costa (ou alguém do seu gabinete) para informar o primeiro-ministro do conteúdo da reunião que tinha ocorrido no Banco de Portugal.

Se não fosse assim, por que razão o primeiro-ministro contactaria (como já confirmou) o governador Carlos Costa logo a seguir à dita reunião para considerar “inoportuna” (como também já confirmou) o afastamento de Isabel dos Santos do EuroBic? A bota não bate com a perdigota.

Acresce que aquilo que o dr. António Costa apelida de “intervenção” é o resultado da simples aplicação da lei portuguesa e das regras do BCE.

5 O quarto facto a constatar já tem a ver com o chamado caso BANIF e com outra questão simples: o dr. António Costa está errado quando tenta corrigir uma informação sobre a data do envio da carta do primeiro-ministro para os líderes da Comissão Europeia e do Banco Central de Europeu.

Não só a famosa carta tem a data de 14 de dezembro, como a mesma foi enviada por email para Bruxelas e Frankfurt nesse mesmo dia.

O primeiro-ministro mandou escrever que agiu de forma “leal” com o dr. Carlos Costa mas facto é que não só o conteúdo dessa carta dirigida ao dr. Mário Draghi, governador do Banco Central Europeu, não foi consensualizado com o então governador do Banco de Portugal, como também o envio da mesma não foi alvo de qualquer informação ao supervisor nacional.

Dito de outra forma, a missiva foi enviada nas costas do governador. Acrescente-se que o Banco de Portugal só teve conhecimento dessa missiva por intermédio do BCE e durante a tarde do dia 14 de dezembro.

O que é deveras original quando o objetivo da carta eram dois:

  • colocar em causa a saída limpa conseguida por Portugal em maio de 2014 (um ponto político fundamental para o dr. António Costa), pondo em risco toda a avaliação que o BCE e a Comissão Europeia fizeram na altura sobre a situação portuguesa.
  • Informar que a banca nacional estava em má situação, nomeadamente o Novo Banco e o BANIF — e que este último banco, segundo o dr. António Costa, encontrava-se na situação original de “pré-resolução”.

6 O quinto facto a constatar é que não é verdade que o “processo de venda voluntária” do BANIF  “não se concretizou no prazo necessário, tendo-se demonstrado inviável uma venda que não decorresse em contexto de resolução”, como se lê nas respostas enviadas.

E não é verdade porquê? Em primeiro lugar, porque no momento em que a carta é enviada estava a decorrer o tal processo de venda. Segundo o respetivo calendário, as ofertas vinculativas seriam entregues pelos vários fundos de investimento e bancos interessados (e havia vários) até 18 de Dezembro.

Em segundo lugar, março de 2016 era o prazo final para a conclusão do processo de venda — um prazo que, refira-se, tinha sido estabelecido pela Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia.

O que o dr. António Costa preferiu ignorar nas suas respostas pouco esclarecedoras foi o impacto que a notícia da TVI na noite de 13 de dezembro teve na situação do BANIF: uma corrida aos depósitos que levou à saída de 950 milhões de euros dos cofres do banco. E as muitas perguntas associadas a essa notícia que, entre outros, dr. Jorge Tomé, ex-CEO do BANIF, coloca.

Tal como preferiu ignorar que o impacto que a sua carta no processo de análise do BCE de um pedido do governador Carlos Costa para que o BANIF continuasse a ter acesso a uma liquidez de emergência. Porquê? Por causa da saída de 950 milhões de euros em depósitos.

Ou seja, 48 horas depois de receber uma carta do primeiro-ministro português a comunicar que o BANIF está em situação de “pré-resolução”, obviamente que o BCE não colocou nem mais um cêntimo em liquidez de emergência no banco e retirou-lhe o estatuto de contraparte.

Resumindo e concluindo. As contradições, alegados factos e diversas omissões são uma constante nas respostas sobre os casos EuroBic e BANIF. No entendimento do dr. António Costa, é assim que se respeita o escrutínio da Assembleia da República à sua ação enquanto primeiro-ministro.

Corrigida gralha às 10h25 no ponto 5. O ano da saída limpa é 2014 e não 2015.