1. Recordo-me como se fosse hoje. Com 11 anos e uma paixão de criança pelo futebol, estava pregado à televisão para ver as poucas transmissões de jogos em direto que então davam na RTP. Aquele jogo, contudo, era especial. Estavam frente-a-frente o grande Liverpool de Rush e Dalglish e a Juventus de Platini, Boniek e Rossi — e eu estava indeciso sobre quem apoiar; eram os meus dois clubes favoritos em Inglaterra e Itália. O jogo prometia muito mas havia uma bancada em que os adeptos dos dois clubes estavam misturados, separados por poucos polícias. De repente, e antes do jogo começar, vejo adeptos do Liverpool a investirem contra uma massa humana vestida de preto-e-branco. Começaram por usar os punhos. Contudo, do nada, começaram a surgir barras de ferro, pedras e tudo o que fosse possível agarrar para bater em homens, mulheres e crianças que tinham vindo de Itália para apoiar apenas uma equipa de futebol. Os italianos, desesperados, começaram a correr para fora dali, atropelando-se uns aos outros, até chegarem a uma barreira de betão onde muitos acabaram por ficar. Morreram 39 pessoas. Muitos deles, esmagados.

A partir daquele momento, uma nova palavra (hooligan) ganhou uma tremenda visibilidade que resultou na expulsão dos clubes ingleses das competições europeias por cinco anos.

Vem isto a propósito do fanatismo e da violência verbal que é a palavra de ordem no futebol português desde há muitos anos mas que se tem agravado nos últimos tempos. Por via de alguns dos programas de comentário desportivo inenarráveis que se vêem semanalmente em todas as televisões privadas, exponenciados pelas redes sociais, onde abundam os comentários primários e violentos, acima de tudo, da irresponsabilidade dos dirigentes desportivos que querem ganhar a todo o custo, vivemos tempos perigosos no que ao futebol português diz respeito. A cultura da violência verbal já está bem instalada em Portugal — e não há inocentes no Porto, Benfica ou Sporting.

De vez em quando, costumamos ler, ver e ouvir notícias sobre vandalismo em casas de árbitros de futebol ou dos seus familiares, rixas aparentemente não organizadas (como esta antes de um Porto/Sporting), os já habituais assaltos em estações de serviço por claques de futebol dos três grandes em viagem (aqui e aqui) e até destruição de propaganda política de um candidato adepto de um clube rival. Sendo igualmente certo que o fenómeno abrange outros clubes, como o Braga e o Guimarães, como vimos recentemente.

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Também tivemos também casos isolados de adeptos que morreram antes de um jogo de futebol ou a verem um jogo de futebol — ainda nada que se assemelhe nem de perto nem de longe à tragédia de Heysel Park. Desde um adepto do Sporting morto no Estádio Nacional em 1996 durante uma final da Taça de Portugal entre o Benfica-Sporting, passando por jogador de hóquei em patins do Futebol Clube do Porto que ficou em estado de coma após um ataque de adeptos do Benfica, em 2000, até ao mais recente caso de um apoiante italiano do Sporting alegadamente atropelado por outro adepto do Benfica em abril de 2017 — o futebol já tem sangue nas suas mãos. E pior: há cada vez mais sinais de que a cultura do hooliganismo inglês já está bem instalada em Portugal.

2. O único dirigente desportivo que deu um murro na mesa face a este estado preocupante da violência associada ao futebol foi Fernando Gomes. Num corajoso artigo de opinião publicado nos jornais Público e A Bola em setembro de 2017, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol denunciou a “apologia do ódio” fomentado pelos “dirigentes com as mais altas responsabilidades” que potencia a “violência”. Nem Luís Filipe Vieira, nem Bruno de Carvalho nem Pinto da Costa associaram-se a este discurso sensato, civilizado e que é feito em nome precisamente daquilo que todos deviam defender: a credibilidade da indústria do futebol.

Não é de espantar. Jorge Nuno Pinto da Costa é o ‘pai’ deste clima de ódio. Cresceu e consolidou a sua liderança com uma narrativa divisionista entre o norte e o sul (que ainda hoje alimenta guerras ridículas provavelmente no Estado-Nação mais perfeito da Europa) e um discurso de puro ódio à capital do país e aos seus clubes que culminou no sentimento do “queremos ver Lisboa a arder”.

Bruno de Carvalho será o mais fiel seguidor de Pinto da Costa, com os seus discursos incendiários (que já colocaram em causa a segurança de jornalistas) mas Luís Filipe Vieira não fica muito atrás — como vimos este fim-de-semana. A ideologia hoje dominante é simples: ‘vale tudo para ganhar’.

O que acaba por promover uma quase total ausência de auto-crítica dos adeptos de futebol no que aos seus dirigentes diz respeito. Se deixarmos os resultados desportivos de lado, absolutamente mais nada preocupa a generalidade dos sócios dos principais dos clubes portugueses. E devia, tendo em conta a circulação de informação que existe.

Basta atentar num único exemplo — que diz muito a quem leia ou tenha lido jornais desportivos. Sempre que um jogador de futebol se transfere de um dos três clubes grandes para o estrangeiro, o valor de venda do passe internacional é publicitado com valores que, consultados os Relatórios e Conta de cada um daqueles, não chegam a entrar nos cofres dos clubes. Entre despesas de intermediação e outras despesas nunca muito bem especificadas, há muito milhões de euros que são movimentados por intermédio de sociedades offshore de quem não se conhecem os verdadeiros proprietários. Esta opacidade não preocupa nenhum sócio de Benfica, Porto e Sporting? Aparentemente, não.

3. O que nos traz ao último ponto: as últimas investigações judiciais ao Benfica e aos seus dirigentes. Deixando de lado as investigações e as suspeitas propriamente ditas, é incrível o fanatismo e a cegueira inter-classista de todos os adeptos de futebol que perdem a racionalidade não por causa do jogo em si jogado nas quatro linhas mas sim porque dirigentes desportivos estão sob suspeita da Justiça. Fanatismo dos apoiantes do Benfica que arriscam meter as ‘mãos no fogo’ pelos ‘seus’ dirigentes e irracionalidade dos restantes adeptos do Porto e do Sporting ao atacarem o clube da Luz quando se sabe há muito que, se há área onde essa clubite não faz sentido, é a área das investigações económico-financeira.

No caso do Benfica, os adeptos já deviam ter aprendido a lição com Vale e Azevedo. Não quer isto dizer, enfatize-se, que Luís Filipe Vieira seja um caso semelhante a Vale e Azevedo. Significa apenas que, para um clube que já viu um seu ex-presidente ser condenado a pena de prisão efectiva pelas autoridades judicias, já devia ter aprendido que é necessário ter alguma prudência na gestão de processos judiciais.

Vieira, contudo, não deixa de utilizar a mesma táctica de Vale e Azevedo — como aconteceu este sábado. Criar a ideia junto da massa associativa do Benfica de que as investigações a correr visam o clube — e não o próprio líder. Isto é, ao classificar as investigações dos casos dos emails e do e-touperia como um ataque ao Benfica, Vieira quer confundir-se com o próprio clube. Ou, melhor, quer que o escudo do emblema do Benfica o proteja. José Sócrates tentou o mesmo com o PS e não conseguiu. Mas a ausência de espírito crítico dos adeptos de futebol ainda farão com que Vieira seja bem sucedido.

Muitas das pessoas inteligentes e minimamente razoáveis que perdem a cabeça por causa de um jogo de futebol só vão perceber a gravidade da actual situação de autêntica guerra civil que se vive no futebol português quando acontecer uma desgraça. Levamos anos e anos a ouvir alertas para os perigos dos fogos. Não quisemos ouvir. E morreram mais de 100 pessoas.

Com o futebol, receio que possa acontecer a mesma coisa. E aí quero ver se os srs. Luis Filipe Vieira, Bruno de Carvalho e Pinto da Costa vão assumir as suas responsabilidades. Obviamente que não. Vão assobiar para o lado e sacudir a água do capote.

Registo de interesses: o autor é simpatizante e ex-sócio do Sport Lisboa e Benfica