No labirinto de espelhos em que a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa se tornou, um reflexo despistou o chefe de Estado: a crise do coronavírus. Como aqui escrevi na passada segunda-feira, a ausência e posterior aparição virtual do Presidente conjugaram traços de renúncia. Recebi várias mensagens de reação a esta coluna (“se atacas o Marcelo, ajudas o Ventura!”, etc.), sendo que a forma mais óbvia de prejudicar o incumbente seria não o criticar quando erra. E Marcelo errou.

Errou ao ser passivo com o governo para não afugentar eleitorado socialista que nunca seria seu, errou ao namorar Ferro Rodrigues durante quatro anos para agora tê-lo como maior adversário ao estado de emergência, errou ao convocar um Conselho de Estado a três dias de distância (dando margem ao primeiro-ministro para se demarcar da opção e à esquerda para polarizar o tema) e errou ao ostracizar repetidamente o centro-direita de que tanto precisará para derrotar Ana Gomes ou André Ventura, em 2021. Um país assustado prefere autoridade a barulheira; mas a autoridade tem de aparecer.

O pré-anúncio do estado de emergência de Marcelo foi, como apontava um velho amigo, a sua “crise dos professores”. Mediu mal. Deu razão e corpo a dúvidas que antes eram sussurradas, mas menos visíveis. O Presidente não percebeu o momento político e o momento político virou-se contra ele. A decisão, que é certíssima do ponto de vista constitucional, na medida em que formaliza um maior escrutínio parlamentar e presidencial ao executivo, teve uma fraca execução política. Comicamente, ofereceu a António Costa um inédito porte de estadista. Apesar disso, Marcelo, que queria Estado de Emergência há algum tempo, conseguiu impô-lo ao governo, ao parlamento e ao país, sendo que nenhum dos três o desejava particularmente.

Seria exagerado condenar uma presidência inteira à conta do amadorismo de um episódio, como seria desonesto não admitir que a excentricidade daquela comunicação colocou um ponto final nessa presidência – dos afectos, da rua, do contacto constante. A viragem política da semana foi essa: o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa começou agora. Vamos ver o que faz dele, vamos ver se o ganha. Será, obrigatoriamente, um tempo diferente no Palácio de Belém. O one-man-show acabará porque não há espectáculos a solo em palcos de crise. Haverá – ou deverá haver – mais aconselhamento, mais acompanhamento, mais equipa, mais concertação. Marcelo tem uma Casa Civil invejável: use-a. Prestaria um serviço aos portugueses, à Presidência e a si próprio, que não poderá carregar um país pandémico às costas sozinho.

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Há uns dias, Ricardo Costa escreveu no Expresso Diário que Marcelo Rebelo de Sousa voltaria da sua quarentena em Cascais como Napoleão Bonaparte regressou do seu exílio em Elba. Para a profecia bater certo, Marcelo teria importado uma cantora de ópera polaca, jogado às cartas com ela, engordado, renovado todo o sistema de estradas e escolas do concelho e escapado às escondidas com um médico e três oficiais de confiança. Ao que consta, o Presidente só poderá ter feito esta última. A comparação, no entanto, tem a sua mística.

Marcelo, como Napoleão, tentou recuperar a sua coroa logo depois de exilado e voltou quase de imediato à frente de batalha. Tal como Napoleão, é um encantador, um hiperativo cujos erros contrastam tragicamente com a sua inteligência. No brasão napoleónico, que ainda hoje compõe a bandeira de Elba, há um trio de abelhas – o animal mais representativo da personalidade de Bonaparte e, poderíamos dizer, de Rebelo de Sousa.

Mas Marcelo, ao contrário de Napoleão, não se pode dar ao luxo de perder a guerra que aí vem. Por um lado, porque, ao contrário de Napoleão, será submetido a eleições. Por outro, porque a ilha de Santa Helena, derradeira morada do imperador francês, tem péssima meteorologia para um hipocondríaco. Acredite em mim, Presidente, que não é coisa para si. Fique por cá. E vá fazendo por isso.