Entre as razões para não mentir, uma das melhores é de Mark Twain: “se disseres a verdade, não precisas de te lembrar de nada”. Na comissão parlamentar de inquérito sobre a TAP, é óbvio que os nossos governantes têm precisado de se lembrar de muita coisa. É uma história em que tudo é grave: os caprichos ideológicos que custaram milhões aos contribuintes, mas também a alegada acção do SIS como polícia para resolver brigas de gabinete, ou as prováveis mentiras de ministros num inquérito parlamentar.

Para Carlos César, presidente do PS, não é assim. A “história do SIS”, de “quem telefonou e quem não telefonou”, não lhe interessa. Segundo ele, os “portugueses já não querem saber disso”. O que lhes importa são os “bons resultados da economia”. Vou dizer que César não tem razão? Vou argumentar que de Faro a Viana, o país ferve de indignação por causa da possibilidade de o serviço de informações ter passado a fazer de polícia às ordens de uma chefe de gabinete supostamente a actuar por contra própria? Não vou. Mas vou lembrar outras coisas de que os portugueses também não queriam saber. Em 2010, era a dívida pública. Ainda se recordam? Os mercados de capitais tossiam. O primeiro-ministro socialista ria-se, e explicava com um ar superior que as dívidas não eram para ser pagas. Com excepção do Dr. Medina Carreira, ninguém queria saber. Em 2011, quando o governo socialista fez o acordo com a troika para subir impostos e cortar pensões, toda a gente passou a querer saber.

Sim, o dinheiro conta, e não é preciso explicar porquê. Mas o regular funcionamento das instituições e o respeito pela lei e pelos procedimentos também contam. Se não há ninguém para explicar porquê, ou se a voz de quem explica não vai longe, isso não é uma vantagem, mas mais um grande problema do regime.

Repito: admito que Carlos César possa ter razão, como talvez tenham tido todos os ditadores que disseram o mesmo que ele: o que o povo quer é pão, ninguém come liberdade. Sim, foi muitas vezes preciso faltar o pão para as pessoas exigirem liberdade, como na Primavera Árabe. Carlos César tem assim a história do seu lado? Não. Uma democracia não é igual a uma ditadura. Numa ditadura, quem telefonou a quem, ou o que fez ou não fez o SIS, não teriam de facto importância. Num regime fundado na arbitrariedade, tudo isso seria normal.

Mas numa democracia, contra o que julga Carlos César, não é assim. Até pode ser que o povo, entretido com o pão, não queira saber. Mas a classe dirigente da democracia, se quiser continuar a dirigir uma democracia, deveria querer saber. Numa democracia, ao contrário do que acontece numa ditadura, o regular funcionamento das instituições e o respeito pela lei e pelos procedimentos importam, porque são aquilo que, com as eleições livres, define o regime. Desse respeito e regular funcionamento não depende apenas a confiança nas instituições. Dependem também a segurança e a liberdade dos cidadãos. Quando os líderes de uma democracia se portam e falam como ditadores, como fez o presidente do PS, estão a desvalorizar a democracia e a comprometer a sua própria legitimidade política. Neste caso, a indiferença popular é uma maneira de os deuses cegarem os políticos.

Talvez Carlos César perceba isso da próxima vez que falar da defesa da democracia contra uma das ameaças que o PS gosta de inventar, e ainda menos gente o levar a sério. Quanto ao povo, oxalá que, para perceber, não seja preciso que mais pessoas comecem, como Frederico Pinheiro, a receber telefonemas sinistros a meio da noite.

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