Há uma regra elementar da política que diz mais ou menos assim: recolhe os louros de tudo o que correr bem (mesmo que não tenhas nada a ver com isso) e responsabiliza os outros por tudo o que correr mal (sobretudo quando fores tu o principal responsável). Os políticos e partidos portugueses não se dão bem com regras, mas esta corre-lhes no sangue e seguem-na à risca. O PS sacode as mãos da crise económica que atingiu Portugal a partir de 2009 e que levou ao resgate financeiro em 2011 — a culpa seria de quem chumbou o PEC IV. Os parceiros da geringonça suportaram o governo e aprovaram todos os orçamentos de Estado, mas nos discursos só abraçam as medidas positivas e responsabilizam o PS por todas as falhas. À direita, as falhas são sempre culpa de terceiros — na versão de Rui Rio, os maus resultados eleitorais do PSD não estão associados à sua liderança, mas sim à perseguição dos seus adversários internos.

Habituámo-nos a lidar com este jogo político do passa-culpas de tal forma que até já não esperamos dos partidos outra coisa que não seja a incapacidade de assumir erros e dar a cara pelas suas próprias decisões. Mas há momentos tão particularmente dramáticos da nossa vida colectiva em que a tolerância para este comportamento se esgota. Foi intolerável que, na sequência dos grandes incêndios de 2017, o governo tenha disparado responsabilidades em todos os sentidos, desde o aquecimento global aos autarcas, de modo a rejeitar as suas responsabilidades nas insuficiências operacionais de combate às chamas. E é hoje intolerável, quando enfrentamos uma crise sanitária sem precedentes nas nossas vidas, que a gestão política se faça num registo de desresponsabilização sistemática das autoridades públicas.

As celebrações do 1.º de Maio são um exemplo que só não é caricatural porque aconteceu mesmo. Em pleno Estado de Emergência, a CGTP reuniu milhares na Alameda, em Lisboa, e fez acções em 23 cidades do país — usufruindo de uma excepção às restrições de circulação impostas à população. A excepção, como escrevi na semana passada, era em si mesma uma indecência que comprometia governo e Presidência da República. Mas a expectável grandiosidade do espectáculo da intersindical originou uma indignação generalizada, da qual rapidamente todos se quiseram livrar. De acordo com o governo, nomeadamente pela voz da ministra da saúde, a CGTP pôde organizar as suas celebrações do Dia do Trabalhador porque o decreto presidencial assim o permitiu. Tradução da versão do governo: a culpa é do Presidente da República. Mas Marcelo também tem a sua versão: “Quando fiz esta regra [no decreto do estado de emergência] pensei numa cerimónia mais simbólica”. Ou seja, a responsabilidade foi chutada para as autoridades de saúde (i.e. Graça “saco de pancada” Freitas). E assim, quando em conferência de imprensa a questão surgiu, o secretário de estado da saúde validou essa versão (e não deixou sequer Graça Freitas pronunciar-se): “são as autoridades de saúde que definem as regras sanitárias”.

O passa-culpas é óbvio, sobretudo se tivermos em conta, como João Miguel Tavares destacou, que os preparativos do 1.º de Maio foram articulados entre a CGTP, a Presidência, o primeiro-ministro e o PCP (de forma inédita, aliás, conforme o Expresso noticiou). Mas há ainda que acrescentar o seguinte: num contexto de crise, é impossível confiar em líderes políticos que sacodem as suas responsabilidades para terceiros e que moldam os factos para encaixar nas suas narrativas. Quem decide está sempre sujeito a errar — e, num contexto excepcional, ainda maior é o risco de errar. Mas essa é a cruz do exercício do poder político. O factor diferencial não está, portanto, nos políticos que não erram (porque isso não existe), mas na forma como estes lidam com os seus erros. Talvez já fosse tempo de a política portuguesa amadurecer e aprender esta lição.

Na educação, na saúde, no trabalho, no uso da tecnologia, são muitas as áreas em que já nos prometeram que, devido à pandemia, nada ficará como dantes. Mas há pelo menos uma área onde já descobrimos que tudo ficará exactamente como sempre esteve: a incapacidade dos nossos líderes políticos em dizer-nos a verdade, assumir erros e tratar-nos como adultos.

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