Está enganado quem julga que os nossos governantes não têm um rumo. O país pode andar à deriva com uma dívida pública cada vez maior e uma perspectiva de futuro limitada, mas os nossos governantes sabem bem o que precisam e o que fazer para o conseguirem.

Veja-se Marcelo Rebelo de Sousa. Há duas semanas referi a sua intenção de ser o dono disto tudo por via de uma eleição esmagadora que o limpe das suas responsabilidades e que o permita impor-se a um Governo minoritário. Marcelo, com os votos da esquerda e com a direita no bolso, terá como objectivo ser o fazedor de maiorias, ora à direita ora à esquerda ou numa ponte entre os dois lados com o árbitro a morar em Belém. Foi o sonho de Eanes, o desejo de Soares que Cavaco frustrou e que está finalmente à beira de acontecer com Marcelo Rebelo de Sousa. O homem que viveu com o fito de governar Portugal está à beira de concretizar o seu propósito de vida. Não é coisa pouca, há que o reconhecer, embora Portugal pouco (ou nada) ganhe com isso.

O Partido Socialista. Sem maioria no Parlamento, mas com o Estado na mão, o PS sente-se em condições para continuar a gerir o meio político em que os seus dirigentes e militantes se movem. Mesmo com os efeitos económicos da pandemia, os socialistas consideram improvável que o eleitorado puna o PS nas próximas legislativas. O país envelheceu e os comerciantes, a pequena burguesia, já não são tão independentes como nos anos 70 e 80. Com centenas de milhares de funcionários públicos, não há família que não dependa do bem-estar que a máquina estatal proporciona e que o PS preserva. Com as pequenas e médias empresas de rastos e as grandes companhias próximas do Estado, a margem de reacção do país é estreita.

Neste cenário, o problema que o PS tem para gerir é Marcelo. Não porque o presidente represente uma visão de país diferente da do PS, mas porque Marcelo sozinho tem tanto poder quanto o PS. A política portuguesa desceu a este ponto. Nesse sentido, os socialistas decidiram apoiar Marcelo de forma não oficial. É a velha lógica de “uma no cravo e outra na ferradura” de quem quer despachar o assunto sem se comprometer em demasia. Assim, o PS não hostiliza abertamente Marcelo, mas pica-o quando pode. Para isso, nada melhor que descredibilizar as eleições. A inserção nos boletins de voto de um Eduardo Nelson da Costa Baptista, um candidato fantasma que só por desleixo não foi retirado, é de mestre. A fotografia e nome de Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa num boletim que dá vontade de rir é um espelho do que foi o mandato do Presidente. Mensagem mais subliminar que esta não era possível.

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Mas há muito mais que se pode fazer, e se fez, para descredibilizar as eleições e deslegitimar Marcelo Rebelo de Sousa. Uma é não permitir aos que estão infectados a possibilidade de votarem. Crê-se que possam ser cerca de 83 mil nesta situação. Outra é por via da forma atabalhoada como se estão a tratar os votos dos que vivem nos lares de idosos. Claro que a responsabilidade não é do Ministério da Administração Interna. O ministro é Eduardo Cabrita. Por que motivo este ministro deve ser responsável do quer que seja, principalmente quando a estratégia segue o seu rumo?

Se Marcelo Rebelo de Sousa vencer esmagadoramente umas eleições confusas, a sua legitimidade será oportunamente questionada pelo PS quando o PS o considerar conveniente. Marcelo está atento ao ardil e até já veio dizer que não, que a sua legitimidade não será posta em causa. O país vai empobrecer, mas enquanto empobrece poderá divertir-se com esta luta política cheia de truques e trocadilhos de gente que come tudo e não deixa nada.

Claro que acaba sempre por sobrar qualquer coisa. Nesse sentido, PSD, BE e Chega estão no mesmo barco, pois são os que, até agora, se posicionam para a formação de um governo com o beneplácito de Marcelo. Se o peso do PSD em nada depende destas eleições, o mesmo já não sucede com o BE e com o Chega. Ambos precisam de uma radicalização crescente do ambiente político, que os alimente eleitoralmente e que force Marcelo a optar por um ou por outro. Ou seja, que force Marcelo Rebelo de Sousa a, no decorrer do seu segundo mandato, preferir uma aliança do PS com a direita (PSD e/ou Chega) ou com a esquerda.

Como se vê, o país não tem rumo, mas os nossos líderes políticos sabem bem o que querem e o que têm de fazer. Nesse sentido, contam com a maioria da população que ainda ganha alguma coisa com a estagnação. Entretanto, os mais novos, as crianças e os com idade até aos 30 anos, têm a vida hipotecada. É lamentável e desonroso que Portugal se tenha reduzido a isto.