O que é feito do Moisés Espírito Santo? Para quem não o conhece, era um daqueles professores universitários inesquecíveis. Era normal na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa o pessoal arranjar modo de fazer a cadeira dele, de Sociologia das Religiões, mesmo quando vinha de outros cursos. Foi o meu caso e de mais uns quantos colegas de Ciências da Comunicação. O Moisés Espírito Santo era um professor que sacava alunos aos outros professores, if you know what I mean.

As aulas do Moisés Espírito Santo eram, como dizíamos no final dos anos 90, uma trip. Misturavam matéria académica propriamente dita (partindo do princípio, claro, que a Sociologia pode ser considerada matéria académica), relatos das suas experiências ritualístico-rurais (uma vez contou que chegou a expulsar demónios de uma pessoa quando, na ausência de um padre, ele, como professor universitário, teve de desenrascar), anedotas desbragadas e até alguma mímica espontânea (não esqueço os manguitos que fazia para sublinhar as suas teses mais originais). Não havia aulas como aquelas.

Recordo-me também do Moisés Espírito Santo oferecer os seus livros aos alunos. Era um punk na Universidade, assumindo que o seu “do it yourself”, ainda que creditado pelas instâncias institucionais, tinha de chegar mesmo às pessoas além dos constrangimentos do comércio. Tudo isto permitia que a relação que o aluno tinha com o professor não se jogasse naquela presunção cognitiva que torna os alunos cada vez mais alunos e os professores cada vez mais professores. Não objecto contra a diferença funcional entre professor e aluno dentro de uma sala de aula, mas aquela sala de aula, a do Moisés Espírito Santo, permitia prodígios únicos.

Recordo com muito prazer um episódio. Isto seria um pouco antes do ano dois mil e, naquele registo mais franco e horizontal que o professor suscitava, havia espaço para opiniões e perguntas dos alunos. Já não me lembro dos detalhes mas, a certo momento, uma aluna, numa observação que fez, comentou o pouco respeito que lhe suscitava a Igreja Universal do Reino de Deus. Ninguém esperava pelo que aconteceu. O Moisés Espírito Santo passou-se. No final dos anos noventa até eu, mais apalermado que era pelos consensos da multidão, facilmente me juntaria à maioria para bater na IURD. Diante da reacção intempestiva do professor, temi pela minha integridade física (eu e todos, acho).

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Explico: o Moisés Espírito Santo não fez propriamente uma defesa da Igreja Universal do Reino de Deus. Mas arrasou com o ataque que lhe tinha sido feito. Indignadíssimo, afirmou que se algum crédito houvesse em uma comunidade religiosa representar a fé do povo, por certa ou errada que estivesse, ele pertenceria à Igreja Universal do Reino de Deus. Muito mais do que qualquer outro movimento religioso na altura, a IURD tinha a virtude de se encher de quem nenhum privilégio social acumulava. Quase em ponto rebuçado, terminou fazendo, lá está, o seu proverbial e erudito manguito. Ouvi aquilo tudo em sobressalto. Ainda hoje tenho reservas diante dessa substância popular que o professor elogiou, apreciada sem outros critérios além dos da suposta representatividade social – mas o eco ficou cá dentro.

Mais de vinte anos depois, admito que sem o Moisés Espírito Santo eu não quereria defender tanto um princípio sério de liberdade religiosa. Este pobre país, que ainda agora foi compulsivamente catequizado durante a visita papal acerca de ser um oásis de diálogo entre crenças, precisa de uma dúzia de Moisés Espíritos Santos. Portugal, país exemplo de respeito religioso? Não me tramem. Sem o Moisés Espírito Santo eu aceitaria esta e outras platitudes que, com a aparência de bem aventurança secularizada, não passam da velha arrogância que quem monopoliza pode manter sem ser desafiado pelos pequenos.

Sobre o Moisés Espírito Santo poucos diriam ser uma inspiração para uma alma conservadora como a minha. Mas nos anos noventa ainda havia professores que, numa Universidade claramente à esquerda, olhavam os consensos sociais com suspeita. Façam a comparação com a nossa desinspirada era: o Daniel Oliveira, uma das vozes destacadas da nossa esquerda, provavelmente um pouco entornado pelas festividades papais que comoveram o país de cima a baixo, da esquerda à direita, escreveu no Expresso há umas semanas: “apesar de ser ateu, sei que a sociedade seria pior sem a bússola moral da religião e muito pior se a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) for substituída por seitas evangélicas”. Com o júbilo das jornadas derramado em todas as direcções, talvez o melhor não seja, nesta singela citação, concentrarmo-nos no factor bússola mas no factor substituição.

Creio que o Moisés Espírito Santo ensinava Sociologia das Religiões não a pensar em quem substitui quem em termos de respeitabilidade. Talvez ensinasse Sociologia das Religiões pensando mais em quem substitui quem no coração do povo. E, nesse sentido, admirava nas seitas evangélicas uma componente popular que antigamente ainda comovia a esquerda. Afinal, onde estava o povo que os velhos revolucionários diziam representar? Para o mal e para o bem, as seitas evangélicas enchem-se de povo a sério, como tantos partidos de esquerda já não conseguem. O problema destes novos revolucionários, como supostamente o Daniel Oliveira é, não é não nos merecerem o respeito. Pelo contrário, é não saberem viver sem ele. O melhor que temos para lhes dar, ensinou-me o Moisés Espírito Santo, é um erudito manguito.