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De jazz a rock. Do hip-hop e das novas batidas eletrónicas até à música country. Da folk ao groove da soul e do R&B. E dos nomes consagrados, com carreira de longa data, às estreias discográficas e aos discos que fogem à estrutura pop e ao formato canção. São muito diferentes entre si, os discos do ano do Observador.

A variedade vê-se até pelos poucos álbuns escolhidos por mais do que um crítico, jornalista ou radialista convidado pelo Observador (por escrever regularmente sobre música para este meio) a eleger os seus preferidos de 2022. Apenas dois discos surgem por mais de uma vez nas escolhas destacadas por estas oito pessoas, e dificilmente poderiam ser álbuns mais distintos nos seus ritmos e balanços. São eles MOTOMAMI, a coroação pop da espanhola Rosalía, e Big Time, o álbum recolhido e plácido da cantora e compositora norte-americana Angel Olsen.

Foram-se os discos considerados consensualmente “os melhores” — um reflexo, certamente, do acesso alargado a música infinita que o streaming promove —, veio a diversidade. De géneros, estilos, propostas sonoras, latitudes geográficas. Entre os 45 discos do ano do Observador, estão álbuns de artistas de EUA, Canadá, Espanha, Portugal, Reino Unido, Irlanda, Bélgica, Brasil, México e Austrália. Alguns para concordar ou discordar já, outros para descobrir, nos próximos dias ou ao longo dos próximos meses. Durante 2022, eles foram a nossa companhia. Agora, partilhamo-los consigo.

André Santos

Charles Stepney, “Step On Step” (International Anthem)

Charles Stepney estava condenado, para grande parte do mundo, a um nome nos créditos dos Rotary Connection, Minnie Riperton, Earth, Wind & Fire ou Terry Callier. Apesar de destacado em vários álbuns como produtor, compositor ou arranjador, ficaria como uma referência para aficionados, conhecedores ou a comunidade de Chicago que se lembra dele. Step On Step lembra o que também é o trabalho de uma editora: dignificar os heróis da sua comunidade. Durante décadas as filhas de Stepney tentaram editar a música que o pai gravou na cave da casa onde viveram, sem sucesso. Até que a International Anthem entrou na conversa e não só editou essa música, como apresenta Step On Step como parte de uma história maior, um convite para conhecer o produtor, compositor, arranjador e, agora, músico a fundo. Mais de uma hora de música funk, boogie, early-disco, jazz e muzak. Sem cedências, num estado genuíno, inspirado.

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Claire Rousay, “Everything Perfect Is Already Here” (Shelter Press)

Fácil cair na armadilha de que já tudo foi feito. E eis que se ouve Everything Perfect Is Already Here, álbum composto por duas peças de quinze minutos que narram histórias construídas com field recordings e edificadas com um sentido orgânico pela norte-americana Claire Rousay. Já se viu isto feito – há décadas – mas Rousay tem a habilidade de tornar estes sons vivos, envolventes e interativos com o ouvinte. Transporta-o para aquele momento, espaço, tempo, e ele parece um intruso num contexto que pouco tem de íntimo mas, por causa da invasão, sente-se como tal.

Maria Reis, “Benefício da Dúvida” (Cafetra)

Por esta altura, Maria Reis já deveria estar noutro patamar. Na maior parte das vezes diz-se isto como um choradinho. Neste caso é, à falta de melhor palavra, um elogio. Isto porque Maria escolheu, e escolhe, estar onde está. E isso dá-lhe uma independência que poucos artistas têm, porque a ela pouco lhe interessa o outro e, sim, o que faz. Escreve como ninguém, expressa-se como ninguém e tem uma habilidade de transformar a mais quotidiana das situações num manifesto eloquente sobre o presente, o seu presente: e quem a ouve com ouvidos de ouvir, abraça e sente o que ela canta. Porque escolhe continuar neste caminho, Benefício da Dúvida é, por consequência, o seu melhor álbum até à data, mesmo contando com os de Pega Monstro. Quando se mantém a inocência, a ingenuidade, a vontade de dizer e manifestar e a atitude de se estar a cagar para o outro, todos os álbuns soam como o primeiro álbum, têm a garra de quem nada tem a perder. E, como só se aprende mais com a vida, quando se está sempre a fazer o primeiro álbum, esse fica sempre melhor do que o anterior. Continua assim, Maria.

caroline, “caroline” (Rough Trade)

Neste ano houve álbuns novos de Black Country, New Road, Sorry e Black Midi, os três dignos de destaques e de lista, mas a estreia dos caroline tem a qualidade do refresco, de uma banda que foi evoluindo de trio para uma formação com oito elementos, que faz corar a ideia de pós-rock (a que qualquer uma das três bandas referidas na primeira frase devem muito), porque escolhe estar mais ligada a princípios da música concreta, minimal ou contemporânea. Mas é rock na sua essência, experimental se se quiser, exigente de si mesmo e convencido das suas qualidades.

Bitchin Bajas, “Bajascillators” (Drag City)

Durante anos, Bitchin Bajas era um laboratório de experiências, onde o trio composto por Cooper Crain, Dan Quinlivan e Rob Frye explorava ideias que não poderiam concretizar nos mil e um projetos em que estavam envolvidos. A imensa produção dos Bajas, ao longo de pouco mais de uma década, e a forma como editam essa produção faz lembrar as bandas de krautrock da década de  1970. Seja porque devem muito a essa época e, sobretudo, porque aperfeiçoaram a arte de experimentar, improvisar e saber editar as gravações. Bajascillators traz à memória as melhores divagações da música cósmica alemão de finais dos 1970 e inícios dos 1980, com os pés em 2022 e a convicção de que todos temos as chaves para entrar nesta nave espacial.

[As escolhas de André Santos:]

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Cláudia Marques Santos

Arctic Monkeys, “The Car” (Domino Recording Company)

Parece não haver nada que Alex Turner faça mal e este álbum é mais uma prova disso. O tema de abertura – e, sim, há ainda quem ouça discos de forma linear –, There’d Better Be a Mirror Ball, é um single tão imediato que nos põe em perspectiva perante as canções seguintes, como se nos abrisse os poros para a diversidade de propostas que a banda tem para nos oferecer, quer em termos de ambientes narrativos quer de alcance das referências musicais cada vez mais depuradas.

Fontaines D.C., “Skinty Fia” (Partisan Records)

O poder e o arrojo da música dos irlandeses Fontaines D.C. faz com que cada álbum seja uma acontecimento. Skinty Fia não é excepção. Uma atitude punk genuína, para lá do instagramável, a voz de dor, grito e respeito de Grian Chatten canta “gone is the day, gone is the night, gone is the day” (“foi-se o dia, foi-se a noite, foi-se o dia”) em “in ár gCroíthe go deo”, que significa “nos nossos corações para sempre” em gaélico. A banda tinha acabado de se mudar para Londres quando leu a notícia de que na campa de uma irlandesa que tinha vivido a vida toda em Inglaterra não puderam inscrever a frase, com receio de conotações políticas.

Arcade Fire, “We” (Columbia Records)

Os Arcade Fire souberam, uma vez mais, reinventar-se. Como aqui escrevemos aquando do lançamento, em maio, o que é retomado neste disco é o puro encantamento pela descoberta. Como é disso reflexo o terceiro tema, “End of the Empire I-IV”, os Arcade Fire percebem que, até na impossibilidade de regressarem àquilo que já foram e àqueles que já tiveram, há uma sensação de apaziguamento. Como se aceitássemos não só o que já não somos como também o que já não iremos ser.

Pedro Alves Sousa, “Má Estrela” (Shhpuma)

A saúde do jazz de improvisação em Portugal passa pelo saxofone de Pedro Alves Sousa que, com Gabriel Ferrandini na bateria (a participar nesta formação juntamente com Simão Simões e Bruno Silva na electrónica e Miguel Abras no baixo eléctrico), têm sido autores de performances memoráveis nos circuitos alternativos de música. Este Má Estrela reflecte o percurso deste músico, que iniciou a carreira na electrónica exploratória, e concilia aqui os dois géneros de forma hipnótica, a ressoar algum do psicadelismo como o que encontramos em Alice Coltraine.

Gala Drop, “Amizade” (GDRecords)

De regresso ao formato em trio – Nélson Gomes, Afonso Simões e Rui Dâmaso –, o novo disco dos Gala Drop é pura inventariação sonora, do funk ao psicadelismo, da guitarra do Magreb ao dub dos subúrbios de Londres. São sete temas sempre em tons de festa, de exploração, de viagem. Gravado em tempos de covid (no gnration, em Braga) e tendo em conta o que os próprios referiram em várias entrevistas – estarem a sentir na pele uma Lisboa da gentrificação –, este Amizade apresenta-se como um objecto antitético às vibrações negativas que ecoam no país e no mundo.

[As escolhas de Cláudia Marques Santos:]

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Filipa Teixeira

Bala Desejo, “SIM SIM SIM” (Coala Records)

Foi lançado no início do ano e logo aí estava na cara de que seria um dos álbuns de 2022. Zé Ibarra, Lucas Nunes, Dora Morelenbaum e Julia Mestre, amigos de adolescência, juntaram-se na pandemia para, fechados em quatro paredes como todos nós, revisitarem o samba, o tropicalismo, a MPB, a salsa, o reggae, o melhor da pop, trazendo ao mundo uma obra que exalta o passado, abrindo novas narrativas de presente e de futuro. “Recarnavalizar” é o verbo-bandeira de SIM SIM SIM, um manifesto de amor, tesão, espiritualidade e união. Não será mesmo isso que todos nós precisamos para habitar o mundo de uma forma mais leve e bonita?

Angel Olsen, “Big Time” (Jagjaguwar)

Chegada ao sexto álbum de estúdio, Angel Olsen conquistou em definitivo o meu coração. Não querendo desprestigiar belíssimos discos como Whole New Mess (2020), All Mirrors (2019) ou My Woman (2016), a verdade é que em Big Time, ao aproximar a sua linguagem das raízes do folk e do country americano, Angel Olsen deixou a nu um tipo de vulnerabilidade que dispensa grandes adereços para se manifestar numa obra sublime. Big Time resume-se a isto: letras e arranjos crus, salpicados de ironia – que tormento seria passar pelos momentos de dor se não fosse a ironia – que resultam num conjunto de dez canções coesas e profundamente humanas. Thanks for the free ride, Angel.

Surma, “alla (Omnichord Records)

Quando lançou Antwerpen, em 2017, Surma encabeçou, com toda a justiça, as principais listas de melhores álbuns nacionais do ano. Com alla (palavra sueca, sem género, que significa “todos”) ela volta a não nos deixar grandes alternativas: este novo disco representa a explosão de tudo o que estava contido no seu antecessor e é a mais fiel expressão de Surma enquanto artista que tem vários mundos dentro de si. Se há desígnio que a arte nunca deveria perder é a sua capacidade de nos confrontar. Pois, cara Surma, espero que continues a tirar-nos das caixinhas que nós próprios construímos para entender o mundo e que nos provoques este delicioso desconforto que é nos reconhecermos em lugares onde nunca acharíamos possível encontrarmo-nos.

Silvana Estrada, “Marchita” (Glassnote Records)

Com quatro cordas e um vozeirão e uma alma tremenda se faz uma grande música. Assim nos provou Silvana Estrada, cantora e compositora mexicana que, com um cuatro venezuelano entre as mãos, nos pôs a chorar com as suas canções de amor e desamor em Marchita, o seu primeiro álbum de originais. O que mais impressiona em Silvana é que, apesar dos seus tenros 25 anos, ela encarna as grandes vozes femininas da América do Sul, como Chavela Vargas, Mercedes Sosa ou Toña la Negra, cantando lutas e dores de várias mulheres do passado e do presente. O Grammy Latino de Best New Artist foi a confirmação de todo o seu talento e para 2023 já há garantia de novo álbum. Fiquemos atentos.

Alabaster dePlume, “Gold” (International Anthem)

Saxofonista, ativista, poeta, compositor: Alabaster De Plume é tudo isso e tudo isso está em Gold, álbum que se desenrola como uma oração contínua durante pouco mais de uma hora e que nos exige entrega total na sua escuta. Movendo-se entre o jazz, o afro beat ou o trip hop, entre o espírito perturbado de Tom Waits e o sagrado de Leonard Cohen, Gold é a decomposição do ser humano em todas as suas camadas bestiais e divinas. É um pedido quase desesperado para não nos esquecermos de que somos preciosos, como nos canta logo no segundo tema, e que nos acorda para o absurdo que é passar a nossa existência de tal forma submersos em trivialidades que nem conseguimos reconhecer um ser humano quando nos cruzamos com ele. A mensagem é clara e está impressa na capa do álbum: “Go foward in the courage of your love”. Sejamos então corajosos para nos reconhecermos no outro e, através desse gesto de amor, empatia e compaixão, honrarmos o nosso lugar na Terra.

Sessa, “Estrela Acesa” (Mexican Summer)

Sessa canta como João Gilberto cantava: brincando com as palavras, alterando-lhes a métrica, deglutindo-as e fazendo de cada frase um pequeno pedaço de poesia. Depois de um magistral Grandeza (2019), inevitável pleonasmo, o músico nascido em São Paulo presenteou-nos este ano com Estrela Acesa, disco no qual prossegue o seu trabalho de recuperar os batuques, o canto de sereia feminino e as guitarras hipnóticas para aquilo a que podemos qualificar como uma nova vaga tropicalista brasileira. Delicadeza é o atributo que melhor define as suas composições. Quem não se arrepiar com versos como Música não é só bater junto, mas é bater junto também / Música não é só bater junto, é bater junto de alguém, só pode ser ruim da cabeça ou doente do coração.

Menções honrosas: “Motomami” (Rosalía), “Dragon New Warm Mountain I Believe In You” (Big Thief), “De Todas las Flores” (Natalia Lafourcade), “Refraction Solo” (Rodrigo Amado)

[As escolhas de Filipa Teixeira:]

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Gonçalo Correia

Tim Bernardes, “Mil Coisas Invisíveis” (Coala Records / Psychic Hotline)

Continua a superar-se, Tim Bernardes. Depois de em 2019 ter subido o nível com o melhor disco feito com a sua banda (O Terno) — atrás/além, quarto álbum completo do grupo —, este ano o novo prodígio da canção brasileira editou aquela que é, até ao momento, a sua obra-prima a solo. Após um álbum de estreia (Recomeçar) em que revelava enorme perspicácia a trabalhar emoções em canções de desamor, com cantigas que abalavam o coração e impulsionavam o caldo lacrimal (sobretudo “Não” e “Ela”), Tim cresceu.

Agora, fez um disco em que apura os arranjos das canções, projeta a (fantástica) voz e mostra-se autor de temas maiores, dos mais narrativos e palavrosos (“Meus 26” e a pesada, mas brilhante, “Última Vez”) e mais diretos e luminosos, como a gostosa “BB (Garupa de Moto Amarela)”. Bernardes continua a trabalhar artisticamente como poucos os assuntos do coração, as dores, as lições de crescer, a vida. A diferença é que agora faz canções melhores e que alargam a palete de emoções trabalhadas. Em “A Balada de Tim Bernardes”, isso é particularmente notório: na sua música, ele agora acredita no amor e na regeneração contínua. Mesmo que não ignore as dores.

Rosalía, “MOTOMAMI” (Columbia Records)

So so so so good, canta-nos Rosalía ao ouvido, por cima de um piano. Estamos nesse momento em “Hentai”, balada digital e emotiva à Frank Ocean — se Frank Ocean fosse um cantor latino de R&B com lata para gravar declarações como te quiero ride / como a mi bike. Antes, na faixa anterior “Chicken Teriyaki”, ouvíamos la Rosalía num registo radicalmente diferente, a deslizar numa batida deliciosamente escorregadia, lasciva q.b., de anca a balançar.

Um dos trunfos de Motomami é precisamente essa diversidade, a capacidade de Rosalía ser tudo e todas as coisas, desafiante, expansiva e rainha da festa (em “Saoko”, “Chicken Teriyaki”, “Bizcochito”), recolhida e intimamente vulnerável (“Hentai”, “G3N15”, “Como Un G”, “Sakura”), aliando uma subtileza gingona (“Candy”, “La Fama”) a maravilhosa neurose sónica (“CUUUuuuuuute”). E ainda mistura tradição (“Bulerías” e “Delirio de Grandeza”) com uma nova pop só dela, usando o autotune com uma sofisticação e cuidado que raramente se tem visto. Rosalía encontrou um segredo qualquer para conciliar graciosamente, com harmonia, as emoções mais densas — a ribombar, em alguns casos, e a estilhaçar-se, noutros, naquela maravilhosa voz — e a desbunda pop mais irresistível, de festa em que é impossível não querer estar. Bravo.

Kendrick Lamar, “Mr. Morale & The Big Steppers” (PGLang / TDE / Aftermath Entertainment / Interscope Records)

O rapper mais genial destes tempos é cada vez mais o rapper mais solitário destes tempos. Percebemo-lo logo pelo piano com que termina “United in Grief”, depois do nó no cerebro dado pela percussão neurótica e pelas cordas. Confirmamos depois, ao longo do disco, que a cabeça de Kendrick Lamar é um planeta vasto de ritmos, sons, andamentos, modos de cuspir palavras, entoações da voz.

Mr. Morale & The Big Steppers não é um disco de bombons, cheio de singles imaculados e sem pontas soltas, como o excelente DAMN. o era. É um disco que confronta o ouvinte, em alguns momentos até inóspito e agreste, espécie de ida à terapia de um novo mestre da heteronímia. Sem medo de expor as suas contradições e “personagens” interiores, mas com a capacidade de até musicalmente soar apenas a si mesmo. Inclusivamente quando dispara indiscriminadamente em todas as direções sónicas. O resto do cosmos do rap fica do outro lado. Algumas das pérolas: “Die Hard”, “Father Time”, “Rich Spirit”, “Purple Hearts”, “Auntie Diaries”, “Mother I Sober”.

Bill Callahan, “YTI⅃AƎЯ” (Drag City)

Vou roubar a um amigo um resumo do feitiço Bill Callahan: poderia ler as páginas amarelas que seria incrível à mesma. É claro que o cuidado que tem com as palavras é outro, que a elegância dos ambientes das canções ajuda e muito — instrumentação discreta, mas de extremo bom gosto — mas é aquela voz grave, sempre no centro das canções, que hipnotiza.

Neste novo disco, “Ytilaer“, há canções mais pachorrentas e apaziguadas (“First Bird”, “Everyway”, “Lily” e até “Naked Souls” antes desta desaguar em desvario ruidoso), outras mais espectrais e com  guitarra e coros de assombração (“Bowevil”), alguma tensão nervosa (“Partition”), duas tremendas canções (“Coyotes” e a animada “Natural Information”) e algumas vozes e sons dissonantes, disruptivos e distorcidos, a irem aparecendo para quebrar a monotonia. Talvez seja uns furos abaixo no campeonato Bill Callahan, que já nos deu discos como Sometimes I Wish We Were an Eagle, mas esse é um campeonato só seu. No de 2022, está bem lá em cima.

A Garota Não, “2 de abril” (edição de autor)

Algumas canções do disco anterior, Rua das marimbas, já o sugeriam. “No dia do teu casamento” e “Mundo do avesso”, por exemplo, eram pistas de que estava a surgir uma nova escritora de canções a ter em conta na música portuguesa, alguém com uma sensibilidade melódica e lírica promissora. Mas 2 de abril, o segundo disco de A Garota Não (Cátia Oliveira), é um enorme salto de qualidade, um álbum já não apenas com pistas mas com força na sua coesão. É, também, menos espartilhado no seu espectro sonoro e com um leque de canções em que a palavra e a voz surgem trabalhadas com minúcia.

Do som cheio de “Dilúvio” (“a vida fica difícil / o tempo passa tipo míssil”) ao balanço onírico de “Ai Weiwei”, da reflexão sobre a fratura exposta da habitação em “Não sei o que é que fica” (com Chullage) a uma portentosa canção de amor construída a partir das palavras de Eugénio de Andrade (“Urgentemente”), da ternura e do artesanato com palavras feita em “O amor é bom” ao feminismo lúcido e humano de “Mulher Batida” e sobretudo de “Que mulher é essa”: é uma grande viagem, que termina com uma “Canção a Zé Mário Branco” que põe A Garota do lado certo da corrente. Isto é, do lado da linhagem da melhor escrita politizada de canções em português, neste rio que foi do soldadinho ao welcome, monsieur, a casa é vossa:

Liberdade, querida liberdade
o nosso chão tem sonhos e vontades
há quem seja comum
há quem não tenha assunto
há quem traga mais um
há quem traga um conjunto
porque a força que traz
tem o povo na frente
e ser um dos que faz
resistência à corrente
derramar na canção
o que dói no país
ser a revolução 
ser a boca que diz

Papillon, “Jony Driver” (Sente Isto)

É a larga distância o melhor disco de hip-hop português lançado este ano. E é, igualmente, um dos melhores discos de 2022 — independentemente do género musical ou do território em análise. Antigo membro do grupo GROGNation, Papillon (Rui Pereira) encontrou na música a solo o espaço mais apropriado para abrir as asas e voar. Depois de Deepak Looper, de 2018, um disco que teve produção executiva de Slow J e que já mostrava como a capacidade lírica e narrativa de Papillon podia casar com os ambientes sonoros e rítmicos mais apurados, eis que chega a confirmação.

Com o apoio de Charlie Beats, que ajudou a montar este puzzle sónico a partir de batidas e ritmos que vieram de muitos lados (Juzicy, Fumaxa, Boss AC, Holly, o próprio Slow J e o próprio Papillon, vários outros), Papillon fez um álbum com dois grandes méritos. Um é lírico: como se prova, fazer malabarismos com as rimas e com os sons das palavras, colocando-as/dizendo-as de múltiplas formas (dependendo do que o ritmo da música pede), não é incompatível com contar histórias e dizer coisas compreensíveis, interessantes, que não são lugares comuns estafados ou as expressões feitas do costume. O segundo é musical: a arquitetura sonora e de ritmos é um luxo, atirando a chatíssima discussão de claques boom bap vs trap para o galheiro. Seria injusto destacar temas porque o nível é alto do início ao fim — e a forma como as canções se vão enlaçando é um dos trunfos deste disco.

Menções honrosas: “A Light for Attracting Attention” (The Smile), “Hugo” (Loyle Carner), “Everything Was Beautiful” (Spiritualized), “Neon Colonialismo” (Batida), “Jazz Codes” (Moor Mother), “Renaissance” (Beyoncé), “Terra Dormente” (Filho da Mãe), “Weather Alive” (Beth Orton), “Multitude” (Stromae), “Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky” (Porridge Radio), “GOLD” (Alabaster dePlume), “Big Time” (Angel Olsen), “How Is It That I Should Look at the Stars” (The Weather Station), “Dois Quartetos Sobre o Mar” (Mário Barreiros), “Casa Guilhermina” (Ana Moura), “Chasing Contradictions” (Ricardo Toscano Trio)

[As escolhas de Gonçalo Correia:]

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Isilda Sanches

Eddie Chacon, “Pleasure, Joy And Happiness” (Day End Records)

Saiu discretamente em 2020, mas teve reprensagem este ano porque entretanto ganhou culto. Eddie Chacon era metade de Charles & Eddie, dupla que ficou conhecida em 1992 com “Would I Lie To You”. Trinta anos depois, Chacon faz a sua estreia em álbum de forma absolutamente exemplar. Pleasure Joy And Hapiness é tudo o que o título diz, mesmo nos momentos tristes. Um disco de soul etérea e lo-fi, que funciona como um raio de sol num dia de inverno, luminoso e quente.

Fumo Ninja, “Olhos de Cetim” (Revolve)

Fantasias jazz e retro pop em cenário onírico, algures entre o planeta terra e os confins do espaço. Olhos de Cetim é o primeiro álbum de Fumo Ninja, grupo que reúne Norberto Lobo (guitarrista aqui entregue ao baixo), Leonor Arnaut, Raquel Pimpão e Ricardo Martins. Um disco de canções encantadoras e cintilantes como estrelas. Música bonita que não tem medo de também ser estranha, num disco curto mas precioso que coloca Fumo Ninja entre os nomes mais promissores da actual música portuguesa.

Funcionário, “Cavalcante” (Holuzam)

Funcionário é Pedro Tavares, jovem músico e produtor de Setúbal que tem dividido talento por vários projectos, entre eles Império Pacifico. Cavalcante envolve e hipnotiza, convida-nos a mergulhar no som como num oceano e seguir viagem. É um disco feito com muitos samples e loops, sons processados e naturais que se confundem e nos embalam numa espécie de sonho. Um desafio para os ouvidos e um bálsamo para a mente. Para uma experiência mais intensa, recomendo o uso de auscultadores.

Klein Zage,  “Feed The Dog” (Rhythm Section International)

Klein Zage é Sage Redman, nasceu em Seattle, já viveu em Londres, mas agora tem base em Nova Iorque. Faz música de dança, mas não apenas. Em Feed The Dog, álbum de estreia, opta por concentrar-se no seu lado mais introspectivo e oferece uma colecção de canções intimistas e nostálgicas que às vezes lembram a pop indie dos anos 80, outras o trip hop dos anos 90, mas nunca soam datadas. Um disco a que podemos chamar sóbrio, e que tem a particularidade de poder ser comprado no Bandcamp com uma garrafa de vinho português.

Sault, “11” e “Earth” (Forever Living Originals)

A banda londrina que gosta de manter as identidades na sombra, lançou seis discos este ano, cinco dos quais num lote conjunto, mas cada um com uma personalidade mais ou menos autónoma. Há de tudo, coros e orquestra, jazz, soul, rap, punk, funk, ritmos tribais, doom rock, Deus omnipresente nas canções e uma impressionante capacidade de criação musical. Destaco 11 pela economia e variedade das canções e Earth pelo voodoo das faixas mais percussivas. Os Sault continuam fundamentais, mesmo quando se repetem.

Menções honrosas: “Dia Não Mata Dia” (DJ Danifox), “Dance Ancestral” (John Carroll Kirby), “Música da Terra” (DJ Nigga Fox), “Felicita” (Anadol), “Gaztween I” (Gaztween), “Bajjascilators” (Bitchin Bajas), “Amizade” (Gala Drop), “Can’t Change” (Omar S), “Good Company” (Da Chick), “Lost In Abstraction” (Amanda Whiting)

[As escolhas de Isilda Sanches:]

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João Bonifácio

Sudan Archives, “Natural Brown Prom Queen” (Stones Throw Records)

Um tipo entra numa sala por engano, completamente distraído dos horários de um festival e, quando dá por si, está de queixo caído, orelhas empinadas, olhos bem abertos e coração cheio – foi o que me aconteceu quando deparei com Sudan Archives no Super Bock em Stock sem saber o que fosse de Brittney Parks, a mulher por trás do alias. Não há muita gente a fazer r’n’b exploratório com o violino como principal instrumento melódico – algo que recorda de imediato Kelsey Lu, que parte do violoncelo para criar estranhíssima e encantatória pop enraizada na tradição da música negra.

O universo de Brittney é mais limitado (é, sobretudo, o r’n’b) mas isso não significa que ela seja menos experimental – cada sample, cada beat deixa-nos inicialmente perplexos antes de percorrer a nossa corrente sanguínea e se aninhar no nosso coração. Tudo em Natural Brown Prom Queen é misterioso, opiáceo, sedutor como se esta fosse a música das casas de strip do futuro, a música que Frank Ocean faria se fosse uma rapariga de 16 anos encarregada de pôr a dançar os/as strippers do mencionado local. Que se pode dizer quando um refrão se ilumina com algo tão simples como uma melodia de voz e palmas? Que se pode dizer de uma faixa que parte de um pizzicato de violino sob o qual se vão sucedendo os mais alucinados beats e samples? Natural Brown Prom Queen foi lançado este ano mas é de um tempo que ainda vai chegar. Um tesouro.

Julia Jacklin, “Pre Pleasure” (Polyvinyl Record Co.)

Não há subida íngreme que não acabe num declive pronunciado – e quase sempre que se alcança o topo dá-se um valente trambolhão até cá abaixo. Crushing foi o disco que tornou Julia Jacklin numa princesa do indie-rock – e de repente o seu nome era falado em todas as revistas e ela estava em todos os festivais e rádios. Há quem ame as luzes da ribalta e quem perante a atenção excessiva prefira fechar-se como um ouriço – Pre Pleasure é o ouriço na carreira de Jacklin, o disco de ressaca após a grande festa do súbito estrelato, o momento em que ela põe tudo rewind e revisita a infância, a adolescência, o que veio antes da tempestado.

É um disco mais íntimo e melancólico que Crushing, mais esparso e minimal nos arranjos, com um pouco mais de piano que o seu antecessor, e que deve quase tudo à sua voz, à capacidade de Jacklin de encontrar o timbre certo, o momento ideal para prolongar um vocábulo ou acentuar uma sílaba. É sempre um prazer ouvir Jacklin – mesmo quando ela faz um disco sobre como o suposto prazer (o dinheiro, a fama, as festas) não traz assim tanta alegria e preferia regressar à inocência da infância.

Black Country, New Road, “Ants from Up There” (Ninja Tune)

Bandas como os Black Country New Road são uma raridade – não são exatamente rock mas têm guitarras, não fazem jazz mas usam acordes e progressões do mesmo, fazem música atual mas que comporta todos os sub-géneros imagináveis do passado, incluindo o klezmer. Num certo sentido lembram os Tuxedomoon, ou bandas alemãs como os Can, na capacidade de criarem canções impossíveis de qualificar, que justapõem géneros incompatíveis como quem resolve um puzzle com peças que não encaixam.

Após a edição de Ants from Up There, Isaac Wood, o vocalista e líder da banda, abandonou os BCNR, o que é difícil de entender tendo em conta que o álbum confirma que a ambição da banda era passível de se concretizar num monumento à transgressão e inovação musical: há ecos de música de câmara, há klezmer, há jazz, há cordas e metais, há explosões sónicas, há curvas que dão para desfiladeiros, esquinas redondas e notas a saltar na pauta – isto num conjunto de dez canções, duas das quais instrumentais e a maior parte delas com seis minutos. É impossível saber o que será dos BCNR sem Isaac Wood, mas é simples opinar sobre o que foi – e foi óptimo.

Porridge Radio, “Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky” (Secretly Canadian)

Berrar é uma actividade essencial à sobrevivência – é assim que os centrais avisam os laterais ou os médios de um perigo que lhes está a escapar, ou que fazemos ver a alguém distraído que mais um passo e cai no precipício (isto partindo do princípio que alguma vez estaremos junto a um precipício a ver alguém quase a cair no mesmo). E berrar é uma disciplina na qual Dana Margolin, guitarrista e vocalista dos Porridge Radio, se excede: quando ela berra sentimos que algo de fundamental, que lhe estava a entupir as veias, está a ser expelido para o mundo – algo que, mesmo não percebamos uma palavra do que ela diz (é o meu caso), parece fundamental.

O rock, aproveito para anunciar pela milésima vez, está a morrer (nenhum garoto de 12 anos ouve outra coisa que hip-hop ou reggaeton ou funk brasileiro), mas enquanto houver discos como Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky o rock permanecerá o mais belo dos moribundos. Se não acreditarem nestas palavras basta picarem “Back to the Radio”, com a sua angústia, aquela frase danada (“If we can not get better/ if we can’t talk about it/ And I miss what you were”), a melodia delicada, o crescendo, a raiva, a explosão e os coros aos berros no refrão – isto é a vida no mais intestinal que a vida pode ser, o corpo a expulsar a farpa e a regenar-se pela dor. Adeus, rock, foste o nosso grande amor.

Alvvays, “Blue Rev” (Polyvinyl / Transgressive / Celsius Girls)

É possível que os discos não salvem , mas também é certo que AntiSocialites foi a melhor companhia de muita gente no ano de 2017: muralhas de guitarra à frente, por baixo melodias delicadas e melancólicas que retratavam o fim de uma relação. Mas cinco anos são muito tempo, o suficiente para sarar feridas e transformar a mais miserável das mulheres não na mais feliz mas, pelo menos, numa mulher suficientemente confiante para nos dizer que estas são as canções que nós precisamos AGORA. Blue Rev é isso: Xavi no topo do jogo a distribuir jogo, Picasso a inventar novas formas (roubando todas as anteriores); por isso soa a um best-off de todo o indie-rock feito até agora: da magnífica “Tom Verlain” à power-pop de “Pharmacist”, passando pelas guitarras jangly de “Pressed”, o regresso dos Alvvays é uma declaração de amor às guitarras – e à vida.

Jockstrap, “I Love You Jennifer B” (Rough Trade)

Exactamente 41 segundos depois do início de “Neon”, a faixa de abertura de I Love You Jennifer B, o ouvinte distraído fica confuso: aquilo que começara como uma canção folk, guitarra acústica minimal e voz feminina delicada, transforma-se de repente em algo mais electrónico, como se Beth Gibbons fundisse a sua obra a solo com as dos Portishead – e aos 1m35 segundos tudo muda, uma guitarra agressiva, um beat poderosíssimo, uma linha de órgão saída de um mini-game, antes de tudo acabar como se os Broadcast tivessem retornado com uma vocalista soul, criando uma disfunção musical capaz de provocar distúrbios neuronais e emotivos. Será assim até ao fim: beats marados, sons estranhíssimos (ferrinhos sintetizados, assobios, micro-samples de voz manipulados), oscilando entre a ambient music, o ruído extremo, os beats mais alucinados, r’n’b trôpego e uma voz que tanto recorda Bjork como Françoise Hardy – isto tudo sem nunca perder a noção de que a experimentação sabe tanto melhor quando se vai oferecendo ao ouvinte rebuçados pop. Um tremendo e arriscado e inovador disco.

Beach House, “Once Twice Melody” (Mistletone Records)

A teoria mais repetida sobre os Beach House é que todos os discos dos Beach House são iguais ou mesmo, para os maiores detractores, que todas as canções são iguais. E é verdade que ali entre Devotion e Bloom (com Teen Dream) há uma espécie de vocabulário único em construção e expansão, que torna aquelas canções oníricas a três tempos imediatamente reconhecíveis. Chegados a Depression Cherry sentia-se algum cansaço (apesar de duas ou três canções magistrais), enquanto 7 trouxe um novo som, mais agressivo, mais psicadélico.

Once Twice Melody é a continuação lógica do psicadelismo de 7 mas elevado a uma potência superior, não em termos de agressividade mas de conseguimento de um psicadelismo planante – não é incomum uma banda encontrar o seu estado de graça e tornar em ouro tudo o que toca; o que é extraordinário é perder esse estado e recuperá-lo mais à frente. Quem é que resiste ao órgão de “Hurts to love”, ao refrão de “Only you know”, à delicadeza de “Superstar” (com aquele dedilhado de guitarra perfeito e o maravilho pizzicato de violino, antes do solo de teclas final)? É fácil arriscar e querer impor um som quando se é novo, o difícil é reescrevermo-nos quando já gastámos a sola aos sapatos – e os Beach House podem hoje, contra as más línguas que os acusam de ser uma banda de uma canção só, gabar-se de terem pelo menos duas canções. Ambas perfeitas.

[As escolhas de João Bonifácio:]

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Luís Freitas Branco

Rosalía, “MOTOMAMI” (Columbia Records)

O cenário são dois amigos ao telefone e uma ligação com pouca rede. O primeiro diz qualquer coisa, o segundo não entende e pergunta de imediato: “Chica, qué dices?” Resposta pronta: “Saoko, papi, saoko”. Obviamente que a esta altura já ninguém se recorda porque estavam ao telefone, mas o moral da história é: se procuram o melhor álbum do ano, ouçam MOTOMAMI, o único que conseguiu imiscuir-se nas conversas e romper o ruído de desgraças, guerras e pandemias. Rosalía contradiz-se, transforma-se e corta e cola canções a belo prazer, de Porto Rico à Coreia do Sul, numa colagem insuperável neste ano de 2022 – “Cógela y córtala, y ya”.

Angel Olsen, “Big Time”(Jagjaguwar)

Mais um disquinho, mais uma voltinha de Angel Olsen entre os melhores do ano. Gente mal intencionada esbraveja que basta a cantautora de St. Louis gemer qualquer refrão esganiçado para garantir a titularidade, certamente não acompanham a carreira desta compositora de alta competição, da intimidade arrebatadora de Burn Your Fire for No Witness ao drama operístico de All Mirrors. A voltinha agora é pelo country, acompanhada pelas lamúrias da guitarra slide e do harmónio, Angel Olsen nunca teve uma choradeira tão aconchegada. Que venha mais um disquinho.

Beyoncé, “Renaissance” (Parkwood Entertainment / Columbia Records)

Os anos 90 regressaram em força em 2022, veja-se a chapada de Will Smith a Chris Rock, ou o regresso inesperado da house music às rádios, com um álbum extravagante de Drake e o último hino da rainha Beyoncé, “Break My Soul”. Os samples e o confronto com o neoliberalismo de “Break My Soul” já merecem uma tese de doutoramento, acheguem-lhe mais quinze canções e temos um banquete de negritude e sensualidade para a pista da dança. Aos 40 anos, é o reino de prosperidade de Beyoncé, cada vez mais desnuda – “comfortable in my skin” – destruidora – “I slay” – e com cognome finalmente definido: “Category, bad bitch”.

Cate Le Bon, “Pompeii” (Mexican Summer)

Numa terra erma, de paisagens e canções ocultas, o vulto gélido de Cate Le Bon aguardava pacientemente o ano de 2022. A meio caminho de Pompeii, depois de dez anos a emaranhar harmonias e letras herméticas, a cantautora galesa tenta nos convencer que é de natureza calorosa –  “I’m not cold by nature”. Pompeii é soalheiro como era a cidade romana de Pompéia antes da chuva torrencial de lava, são reluzentes canções pop com uma melodia incómoda em contraponto, a beleza do nervoso miudinho antes da desgraça.

Ana Moura, “Casa Guilhermina” (Sony Music Portugal)

Casa Guilhermina é um álbum inevitável. Ana Moura não inventou a presente reurbanização do fado, incorporou por inteira uma Lisboa que andava a cantar pelas esquinas, cada um a seu canto, e marcou definitivamente o matrimónio do fado com a cantiga africana, em particular a angolana. Mas a Casa Guilhermina, o “desejado” apogeu deste novo fado lisboeta, somente existe através do canto desassombrado de Ana Moura, com capacidade de enlaçar Liceu Viera Dias a Maria da Fé, como quem diz, tudo isto existe, tudo isto é fado.

Menções honrosas: “Life on Earth” (Hurray For The Riff Raff); “Multitude” (Stromae); “Ants From Up There” (Black Country New Road); “Mr. Morale & The Big Steppers” (Kendrick Lamar); “The Car” (Artic Monkeys); “It’s Almost Dry” (Pusha T); “Gemini Rights” (Steve Lacy); e por fim, em Portugal, um bem-haja aos Bandua. 

[As escolhas de Luís Freitas Branco:]

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Nelson Ferreira

Charlotte Adigéry & Bolis Pupul, “Topical Dancer” (Deewee)

Não será um disco fácil ou imediato, mas esta dupla belga faz disso uma virtude. “Ceci n’est pas un cliché” é das músicas que mais me fez dançar em 2022 e a longa digressão mundial deste dois vai fazer deles a maior exportação musical do país, depois de Stromae.

Bartees Strange, “Farm to Table” (4AD)

Depois de um passado ligado à política junto da presidência de Barack Obama, Bartees Strange conquista 2022 num disco com selo da conceituada editora 4AD. Se a soul e o melhor R&B se fundissem com o rock americano, era a Bartees Strange que isso iria soar.

Salto, “Língua Afiada” (Cuca Monga)

Um regresso às sonoridades mais pop, coloridas e dançáveis para a banda de Guilherme Tomé Ribeiro e Luís Montenegro. O talento pop dos Salto está espelhado nos vários projetos, colaborações e solicitações que estes músicos têm mantido ao longo dos últimos anos, instituindo-os como uma espécie de “embaixada pop não vulgar” da música nacional. Os Salto de Língua Afiada são os meus Salto favoritos.

Ethel Cain, “Preacher’s Daughter” (Daughters of Cain Records)

Obrigado, “listas de melhores do ano”, por me terem feito descobrir Ethel Cain. Ainda estou a assimilar toda a negritude da sua voz e das suas composições. Mas uma coisa é certa, se este não é o melhor disco do ano, é seguramente a melhor estreia do ano.  A música de Ethel Cain é belíssimamente dilacerante.

Gabriels, “Angels & Queens part1” (Atlas/Parlophone)

Um cantor gospel de Compton, um produtor inglês e um violinista de L.A. entram num bar. Podia ser este o início da história deste trio que foi ainda recrutar o produtor dos maiores sucessos de Kendrick Lamar para um das obras primas do ano. Nova soul ora suja, ora elegante, ora epopeica — ou não se cantassem aqui as dores da perda e as alegrias do amor.  Venha daí essa part 2!

[As escolhas de Nelson Ferreira:]

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