É claro que o próximo verdadeiro problema vai ser a terrível miséria que por aí grassará quando a pandemia começar a desaparecer. Trabalhadores e empresários, e com eles a sociedade inteira, têm os mais negros dias pela frente e os tempos da troika parecerão retrospectivamente uma brincadeira de menino de coro. A única reserva que esta consideração merece vem do optimismo implícito em pensar-se num futuro independente deste presente, porque ninguém sabe quanto ele vai durar e se não está destinado a repetir-se ciclicamente. De qualquer maneira, os sinais estão um pouco por todo o lado e não enganam. Nos países com maior tradição de dinamismo económico, por maior que seja a destruição, haverá sem dúvida uma laboriosa recuperação. Nos que a não têm, como Portugal, ela é muito mais difícil de conceber. Preparem-se para o pior, que o pior é certo.
Ou então, se tiverem a sorte e o luxo de poder pensar noutras coisas, pensem noutras coisas. Por estes dias, é o que tenho tentado fazer. Pus-me a ler (num caso, a reler) as obras quase completas de um historiador da pintura francês, Daniel Arasse, morto ainda novo em 2003 com a doença de Charcot (esclerose lateral amiotrófica). Especialista da Renascença italiana, mas tendo escrito também sobre outras épocas e outros autores, de Vermeer a Anselm Kiefer, a sua história da pintura ocupa-se sobretudo dos pequenos detalhes, às vezes quase imperceptíveis, que podemos, se a nossa atenção for chamada por eles, observar em certos quadros: a mosca pousada sobre o joelho de um velho pintado por Georges de La Tour ou um caracol colocado num bordo de uma Anunciação de Francesco del Cossa, entre um sem-número de outros exemplos. Praticando maravilhosamente a arte da descrição, uma velha disciplina da história e da crítica de arte cujo primeiro exemplo, vezes sem conta nomeado desde a Antiguidade, é a descrição – os gregos diziam: ekphrasis – do escudo de Aquiles na Ilíada e que a destruição da tradição figurativa e mimética deslocou do primeiro plano para lugares mais remotos, Arasse convida-nos a ver a pintura de perto. E convida-nos igualmente a explorar a singularidade de cada obra de arte: a descrição incide, quase por definição, sobre o que é irredutivelmente singular, não há descrição – pode eventualmente haver explicação, amputada da compreensão que a descrição idealmente fornece – do geral.
Estes dias passados com Arasse trouxeram-me a vontade, impossível de satisfazer por estes tempos, de ver de perto pintura em museus. E com essa vontade, a nostalgia de uma vida passada. Grande parte dos anos noventa do século passado vivi em Paris, com toda a Europa relativamente próxima. O que me permitiu ver, alguns várias vezes, os grandes museus europeus: além dos franceses, é claro, os ingleses, alemães, holandeses, belgas, espanhóis e sobretudo os italianos, de Milão a Nápoles. A maravilha da beleza da pintura, a possibilidade do prazer de a ver de perto, em carne e osso, como uma presença com a força toda da evidência, iluminando por dentro as cidades na qual se encontra e da qual faz parte, é ainda hoje para mim uma recordação de pura felicidade e, mesmo conhecendo alguns dos magníficos museus americanos, uma parte maior do significado que a palavra “Europa” tem para mim. Infelizmente – por várias razões que não se prendem todas com a natureza dos tempos presentes -, é uma Europa de ontem, não uma Europa de hoje.
Para além da catástrofe da pandemia e das terríveis sequelas que trará, a Europa de hoje não pode ser pensada fora das permanentes discussões em torno da “União Europeia”. Ora, mesmo que a União Europeia tenha indiscutíveis benefícios – e eu serei o último a negá-los –, a verdade é que a violência exercida sobre as condições quase antropológicas da vida dos povos – aquilo que um filósofo chamava a “insociável sociabilidade” –, traz consigo, junto com a tendência centrípeta que a anima, uma tendência centrífuga não menos forte, que está directamente na origem dos vários nacionalismos que idealmente deveria contrariar. Esta consideração não me parece excessivamente interpretativa, relevando antes da ordem do factual. Daí a tensão permanente que se observa na Europa e que os especialistas no capítulo – e é significativo que as questões europeias se tenham tornado objecto quase exclusivo de especialistas – recapitulam dia após dia. Leio regularmente, por exemplo, aquilo que Teresa de Sousa, que conhece aquilo de que fala, escreve no Público. Tirando alguns raros momentos de optimismo, eles mesmos problemáticos, o que ressalta o mais das vezes dos seus artigos é uma patente angústia pelos destinos da União, como se a tal insuportável tensão fosse estrutural e não meramente conjuntural.
O último episódio desta tensão gira em torno dos célebres “coronabonds”. Devem eles ser criados – algo que, segundo li, a burocracia europeia só poderia pôr em prática daqui a três anos – ou devem eles ser recusados? É óbvio que para um país como Portugal (e a mim pessoalmente) davam um jeito dos diabos, para falar de uma forma delicada, tal como o davam à Espanha, à Itália e a vários outros países. Mas como não perceber os governos alemães, holandeses, austríacos e finlandeses, são directamente responsáveis, em virtude da democracia, convém lembrá-lo, perante a vontade dos seus eleitores? Pôr as coisas em termos de “egoísmo” é reduzir a tensão – e, já agora, a equivocidade – da União Europeia, que permite a indecidibilidade entre as duas posições, ambas possíveis e incompatíveis, a um plano psicológico que falseia a questão. O “repugnante” do nosso António Costa, desdobrado num “re-pug-nan-te” que tem pelo menos o mérito de preservar todas as sílabas, um exercício ao qual ele se poderia dedicar mais assiduamente, além de fazer pensar numa versão actualizada do Finis patriae de Guerra Junqueiro, agora com os cadáveres de ministros holandeses a boiarem, cortados às postas, num canal de Amsterdão, participa dessa mesma redução do político, com a sua legitimidade própria, ao psicológico e moral.
Saudades da Europa de ontem, a de antes do coronavírus e dos últimos estádios da infiltração da sua ideia pela de União Europeia. O melhor é, nestes tempos de reclusão, voltar às moscas e aos caracóis de Arasse e esperar que as nossas prevenções próprias e, sob uma forma ou outra, a solidariedade entre os europeus, diminuam os males presentes e os males a vir, sabendo que o mau tempo está para durar e que a Europa de ontem já não existe.