1. A crise-política-que-não-vai-chegar-a-ser-crise-política revela uma vez mais que a classe política ainda não tomou consciência dos perigos que cada vez mais levam os eleitores a afastarem-se das democracias liberais. Se não vejamos o espetáculo indecoroso dos últimos dias:

  • o Governo a contrariar a sua própria narrativa do fim da austeridade e a empolar alegados custos orçamentais com a reposição do tempo integral de serviço congelados aos professores;
  • o PSD e o CDS a fazerem o contrário do que foi a sua prática orçamental desde o Governo Passos Coelho e a hipotecarem definitivamente, com uma aliança estapafúrdia com a extrema-esquerda, a ideia do rigor orçamental.
  • De tudo o que se passou, o que menos me surpreendeu foi ver o PCP e o Bloco de Esquerda a ter a direita como parceira — fazendo precisamente o mesmo que gostam de apontar ao PS. Está-lhes no sangue e não há que fugir: não interessam os meios para atingir objetivos políticos essenciais.

Repito: foi tudo mau demais. Houve, contudo, uns piores do que outros.

Rui Rio e Assunção Cristas são, definitivamente, aqueles que mais perdem em termos de credibilidade e autoridade. Perante o seu eleitorado natural e, principalmente, perante o centro político que querem representar.

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Rio, por exemplo, criticou António Costa num tom violentíssimo onde só faltou compará-lo diretamente a José Sócrates. Acusou o primeiro-ministro de praticamente todos os pecados políticos possíveis: recordou o passado dos Governos Sócrates, aludiu à vitória do “poucochinho” perante António José Seguro, à derrota eleitoral em 2015 contra a coligação PSD/CDS, aos mais de 100 mortos nos incêndios, ao roubo de Tancos e até ao acidente de Borba. Para quem nunca atacou diretamente Costa e detesta fazer a chamada política dos casos, a reação de Rio deixa claro o seu desespero político.

Já Cristas, que está em modo de controlo de danos desde sexta-feira mas com pouco sucesso, colocou em causa a sua imagem de verdadeira líder de oposição. Ver Ana Rita Bessa (deputada do CDS na Comissão de Educação) em negociação com a extrema-esquerda mata todo o discurso do CDS de ser a verdadeira alternativa ao Governo por ser o único que rejeita negociações com a Geringonça — no todo ou em parte.

Independentemente dos números sobre os custos e das leituras jurídicas sobre quando começa o Estado a pagar a reposição das carreiras do professores, há um facto inegável: se Rio e Cristas propuseram um travão financeiro na lei, e se o mesmo foi recusado pelo PS, por que razão a direita não chumbou o reconhecimento integral do tempo dos professores? Se a estabilidade orçamental é agora uma condição sine qua non para aprovar as reivindicações, por que razão não era antes?

2. Não há dúvida: o PS reposicionou-se ao centro com a imagem do partido das ‘contas certas’ e voltou a ter claramente hipóteses de lutar por uma maioria absoluta. É um objetivo difícil mas ao alcance de um António Costa que teve, de facto, a melhor jogada política dos últimos anos. De uma assentada, conseguiu libertar-se da extrema-esquerda com quem tem (ainda terá, mesmo?) uma aliança parlamentar até à passada 5.ª feira e colou ao PSD e CDS o rótulo de partidos irresponsáveis favoráveis a “orgias orçamentais” — para utilizar uma frase que Rui Rio gosta de repetir.

É irrelevante saber quem tem razão na guerra dos números. Do ponto de vista político, António Costa tomou a iniciativa, atacou na hora certa e entalou todos os adversários. Pior: condicionou todas as reações – prova de que a sua estratégia foi bem sucedida. Pior ainda: a direita recuou totalmente e respondeu positivamente ao seu ultimato. A isso chama-se ter poder e autoridade política.

Há, contudo, duas grandes questões que se colocam:

  • Se António Costa é agora o político responsável que não coloca em causa a estabilidade orçamental, por que razão andou o resto da legislatura a defender o fim da “austeridade”? A austeridade nunca terminou — como o baixo investimento público e o cada vez pior funcionamento dos serviços públicos bem atestam. Mas todas as aspirações dos grupos de pressão, nomeadamente dos funcionários públicos, foram legitimadas com essa narrativa do “virar da página”;
  • A outra questão é simples: para quer quer o PS uma maioria absoluta? António Costa governou durante praticamente quatro anos para aplicar duas políticas centrais: devolver os rendimentos retirados durante a troika aos funcionários públicos e pensionistas e ter contas públicas alegadamente sãs com um recurso histórico às cativações e baixa do investimento público.

Isto é, o PS de António Costa não tem um projeto reformista para Portugal. Não sabe o que quer mudar no nosso país e, muito menos, sabe como o fazer.

É preciso fazer um pequeno esforço de memória para recordar que o PSD de Cavaco Silva e o PS de José Sócrates foram os únicos que conseguiram uma maioria absoluta sozinhos. E conquistaram esse objetivo com projetos reformistas claros (e muito diferentes entre si) para a respetiva época:

  • Cavaco reformou o país de alto a baixo por via da adesão histórica à Comunidade Económica Europeia em 1986;
  • Sócrates queria reformar o país tendo por base o investimento público.

É certo que a aliança com o PCP e o Bloco — os partidos mais conservadores com assento no Parlamento — impediu a constituição de qualquer projeto de reforma de António Costa. Mas agora que se afastou da extrema-esquerda, está na hora de pensar em ideias estruturais para o país. É bom que Costa perceba que as habilidades e o oportunismo político podem servir para conquistar e manter o poder. Não servem para ganhar uma maioria absoluta.

3. Uma grande maioria da população ativa de 5,2 milhões de habitantes em Portugal não é constituída por funcionários públicos mas sim por funcionários do setor privado. Mas é aquela minoria de trabalhadores do setor público que consegue, por via da influência claramente desproporcional que os sindicatos da função pública têm nos media, ter mais capacidade negocial, logo mais influência orçamental. Seja por via da constituição de direitos adquiridos, seja por via da reposição de quaisquer cortes ou congelamentos — que no setor privado só existem se houver racionalidade económico-financeira para tal –, pode dizer-se que os sucessivos governos foram capturados pelos sindicatos da Função Pública.

Isso é um comportamento irresponsável e oportunista por parte do PS, PSD e CDS — os três partidos que constituíram governos constitucionais desde 1976 até aos dias de hoje.

Irresponsável porque está a criar sistemas legais cada vez mais diferenciados, sendo certo que os trabalhadores do setor privado são aqueles que são claramente mais prejudicados.

E oportunista porque os partidos têm medo de perder o apoio dos funcionários públicos — que, tal como os pensionistas, são grupos eleitorais com percentagens de voto acima da média.

É este tipo de classe política — que não consegue lutar pelo bem comum da população — que nos resta?