Se fosse Eduardo Cabrita a gerir a task force de vacinação, o mais provável é que ontem se tivesse ouvido uma declaração oficial do Governo a negar a existência de atrasos e filas de espera junto aos centros de vacinação. Não importariam as imagens, as provas ou a realidade — haveria, no seu lugar, uma “narrativa” para torturar os factos. Não recorro ao exemplo por embirração: Eduardo Cabrita demonstrou sucessivamente a sua incapacidade para assumir responsabilidades e dizer a verdade. Esteja em causa o homicídio de Ihor, um acidente de viação, a aquisição de equipamento (golas anti-fumo), todos os dossiers que envolvem o ministro da Administração Interna ficam envoltos em mentiras, omissões e “factos alternativos”. É um modus operandi, que o Governo adoptou e que António Costa autoriza (se assim não fosse, demitiria o ministro).

Felizmente, quem gere a task force da vacinação é o vice-almirante Gouveia e Melo. E, sendo o vice-almirante, os referidos atrasos foram assumidos. Aliás, até foram anunciados antecipadamente: os portugueses foram avisados que nesta semana se agravariam os atrasos. Mais ainda, isso foi explicado: no contexto actual, em que se pretende maximizar o número de vacinados por dia, terá de se sacrificar a eficiência do processo, sobrecarregando os centros de vacinação e causando demoras em cada etapa. É um trade-off: sim, as pessoas terão de esperar um pouco mais, haverá filas e o processo será mais demorado; mas, ao final do dia, mais cidadãos terão sido vacinados e, a este ritmo, mais depressa chegaremos ao fim do túnel da pandemia. Pode-se concordar ou discordar da decisão (e eu concordo). Mas o ponto-chave aqui é algo tão simples quanto isto: o vice-almirante tratou os Portugueses como adultos, explicou-lhes a decisão tomada, pediu-lhes tolerância para os inconvenientes e sublinhou a mais-valia dos benefícios.

Esta forma de decidir e comunicar aparece nos manuais enquanto bê-á-bá de qualquer comunicação de crise. Dizer a verdade é a chave para ter credibilidade. Ser-se transparente é a chave para se ser ouvido e respeitado. Assumir-se falhas e enquadrá-las em soluções é a chave para se preservar a autoridade. Com esta decisão e, sobretudo, com esta abordagem de comunicação, o vice-almirante Gouveia e Melo deu um exemplo poderoso: mostrou que a comunicação entre o Estado e os cidadãos pode ser limpa e transparente, sem omissões e dispensando os spin doctors.

Dir-me-ão os cínicos que a política não segue as mesmas regras e que mentir compensa. Eventualmente, terão razão. Um estudo recente aplicado à realidade espanhola concluiu que os titulares de cargos políticos eleitos (um presidente de câmara, por exemplo) que se sintam mais confortáveis com mentiras (ou meias-verdades) têm uma maior probabilidade de serem reeleitos (já agora, o estudo foi metodologicamente contestado, num debate interessante a seguir aqui). De resto, em Portugal, parece que as pessoas preferem também a política da mentira. Mas tudo tem um preço e o outro lado da moeda é este: simultaneamente, os Portugueses exibem níveis de desinteresse e desconfiança para com a política dos mais elevados da Europa. E, como mostram os últimos 20 anos em que nos dirigimos para a cauda da UE, assim não sairemos da cepa torta. Talvez esta seja por isso uma boa oportunidade para se reconhecer um problema e arriscar algo diferente, começando pelo mais simples: falar verdade.

Calma. Não, não estou a juntar-me ao coro dos que aspiram a que o vice-almirante lance uma carreira na política. O conselho que lhe daria para os próximos tempos seria mesmo que se limitasse ao que faz bem — gerir a task force — e que fugisse das entrevistas. Estou apenas a dizer isto: não é preciso fazer do vice-almirante um político para que a política aprenda algo com o vice-almirante. E, ninguém duvidará, os nossos políticos teriam mesmo muito a aprender com o vice-almirante se estivessem atentos a coisas tão simples quanto estas: em vez de medir cada palavra nos focus groups, dizer a verdade é a forma mais adulta e democrática de liderar pessoas.

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