Há assuntos que têm sido falados nas últimas semanas e meses, que merecem alguma reflexão suplementar e que se lancem alertas.

Começo pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que, no que diz respeito à Saúde, como já escrevi anteriormente, parece mais do que é.

Em primeiro lugar, a chamada “bazuca” poderá ser uma armadilha de que resultará perda de investimentos em saúde. A bazuca não pode ser substitutiva, tem de ser complementar. Os anunciados 1.383 milhões de euros não podem resultar em menos 1.383 milhões de investimento a concretizar por via das verbas do Orçamento do Estado. O PRR é muito curto para aquilo que Portugal precisa em investimentos em saúde nos próximos cinco anos.

Infelizmente, o que temos tido de política de saúde com os governos do Dr. António Costa é poupança – cortes de dimensão maior do que os aplicados no tempo do Memorando da Troika – ou propaganda. Quanto à poupança, o combate ao desperdício tem estado do lado errado. Em termos de propaganda não é preciso dizer mais nada.

Desde logo, o PRR não desmerece, em termos propagandísticos, quando, em termos da política de saúde, começa por elencar o objetivo (página 79) de pretender “reforçar a capacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para responder às mudanças demográficas e epidemiológicas do país, à inovação terapêutica e tecnológica, à tendência de custos crescentes em saúde e às expetativas de uma sociedade mais informada e exigente”. Como se pode depois ler, sem se terem esquecido de falar em custos – a eterna visão de que saúde é só despesa -, o essencial das respostas “às mudanças demográficas e epidemiológicas do país, à inovação terapêutica”, não cabe neste PRR, uma manta de retalhos. Não se percebem as prioridades, não há documentação que sustente as opções tomadas, não há impactos estimados. No que à saúde diz respeito, temos mais um suposto plano que não é mais do que um exercício feito “a olho” e baseado em ideias repescadas ou na casuística da oportunidade de quem pede. Não é um exercício de planificação e programação de respostas – porquê estas e não outras? – a necessidades identificadas.

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É caso para lançar a ideia da recriação do Gabinete de Estudos e Planeamentos que o Ministério da Saúde há muitos anos deixou de ter, tal como repor a Direção-Geral de Equipamentos, cuja extinção nunca deveria ter acontecido. Não, não desapareceram com o Governo de Passos Coelho. Foram decisões socialistas que nos tempos de troika não foi possível reverter.

Enfim, este PRR, um documento político para Europa ver, é mais um caso para nos relembrar que uma decisão diz-se ser “política” quando:

  1. Não há evidência que a sustente;
  2. Ou a evidência é contraditória, o que é quase igual à anterior, e é justo esperar que se tome uma decisão, sendo que não decidir é uma decisão;
  3. Ou a evidência recomendaria uma decisão diferente da que foi tomada.

Note-se que os “desafios” do PRR (páginas 79 e 80) estão bem elencados e, em abono da verdade, os investimentos previstos até farão falta. A questão está na sua natureza prioritária, no que não está no PRR e poderá não ser feito, no desvio de verbas para coisas que são menos importantes do que outras que ficaram ausentes do PRR.

São gritantes:

a) a ausência de qualquer menção às doenças oncológicas que não seja a uma parte dos rastreios e sem cuidar das respostas aos casos detetados. Rastrear sem ter capacidade para responder terapeuticamente, em tempo clinicamente útil, não é ético. Rastrear mais, o que é necessário para alguns cancros, implica ser capaz de tratar mais, melhor e mais cedo. E nem nos protocolos de referenciação de doenças com maior procura se fala em cancro. São, pelo menos, 50 mil novos doentes em cada ano de que o PRR se esqueceu. Em termos de produção hospitalar, já serão mais de 100 mil “doentes saídos” – o que corresponde a uma medida de produção a partir de altas e tratamentos realizados – em cada ano. São pessoas a mais para que se tenham esquecido delas;

b) A falta de referência à necessidade incontornável de ligar de forma operacional e efetiva toda a rede de dados de saúde ao nível do sistema de saúde, quando nem ao nível do Serviço Nacional de Saúde ela é universal;

c) A continuação da construção e transformação de unidades de saúde familiar sem reformular o seu modelo remuneratório e equipará-lo aos dos cuidados hospitalares. Unidades de reabilitação em centros de saúde? Para quê? Qual a dimensão da necessidade? Justifica-se? As medidas para os cuidados primários parecem uma lista de compras… Ah, já agora, porque não? Olha, mete aí a medição da PCR que pode dar jeito e já vão com sorte por não nos termos lembrado da procalcitonina;

d) A insistência em aumentar a capacidade de internamento em cuidados continuados e paliativos, certamente necessária, sem cuidar de rever o modelo de financiamento e de critérios de admissão;

e) A falta de revisão estrutural do parque hospitalar público, com a insistência nos hospitais novos do costume, o Oriental de Lisboa, Sintra e Seixal, os que têm constado dos orçamentos de Estado desde 2016, o Oriental desde antes de 2011. A “desospitalização” dos cuidados, um objetivo essencial em saúde pública, não pode ser razão para não investir no sistema hospitalar. A forma como se apresentam os projetos para novas construções hospitalares indicia o que comecei por escrever. Este PRR servirá para justificar o que vai ser descontado ao OE em termos de investimento. Não adiciona, substitui e ainda se está para ver a que preço.  O PRR, com o entusiasmo que o envolve, será a desculpa para que se corte na saúde, se deixe de investir em tanta coisa essencial que falta a este “Plano”, para que, no fim, como tem acontecido com as dívidas que o PS contrai em nome do país, fiquemos ainda pior do que já estamos;

f) Depois de mencionar a inovação terapêutica e tecnológica nos seus objetivos, o PRR não tem uma medida que se refira a medicamentos ou tratamentos. Volto a deixar o alerta de que o INFARMED está transformado numa estrutura eminentemente burocrática, com falta de meios qualificados e que, por exemplo, mantém um sistema de avaliação de utilização excecional de medicamentos (AUE) – o mecanismo que permite acesso a tratamentos inovadores cuja aprovação para uso no SNS tende a ser lenta – cheio de erros e defeitos. Os leitores sabiam que é mais fácil um doente ser tratado com um medicamento não aprovado – off label – do que com um medicamento já aprovado pela Agência Europeia (EMA), só porque uma Lei de 2017 impede que se use, no setor público, medicamentos aprovados ainda sem preço negociado com o Ministério da Saúde de Portugal? Bizarro? É a verdade, a dura realidade que nos obriga – doentes e médicos – a ser resilientes e de que a política se esquece.

Mas, sem querer ser repetitivo, convenhamos que ter uma Assembleia composta por deputados que aprovaram a lei mais estúpida da República, aquela que impõe, em nome da simplificação administrativa, que “é competente para a emissão do atestado e para a confirmação do diagnóstico um médico especialista diferente do médico que segue o doente”, ajuda pouco. Estamos em presença de legisladores, Governo incluído, que não entende as práticas de saúde em 2021 e não faz mais do que a mínima ideia do que está envolvido no acompanhamento global de doentes com cancro e outras doenças crónicas. É, salvo honrosas exceções, quase tudo por ouvir dizer, atração para a demagogia e “verbo de encher”.

Refira-se que o proposto para a saúde mental, área muitíssimo carenciada e com problemas de prevalência gigantesca, é o que parece melhor e mais coerente. No entanto, não percebo porque será preciso remodelar já a unidade forense do Hospital Júlio de Matos, de construção recente, e parece-me que há falta de investimento estrutural em pedopsiquiatria. Não percebo a necessidade de eliminar os internamentos de “agudos” em hospitais especializados em psiquiatria que, porventura, ficarão só para residentes, função que progressivamente se quererá eliminada. Todavia, na falta de documentação explicativa das propostas, não se pode emitir uma opinião informada.

Mais dois alertas.

O mundo ainda não superou a pandemia. Percebo o otimismo antecipatório, mas ainda é cedo para nos congratularmos. Vai superar a Covid-19, como superou as pestes de outros tempos. Mas, por agora, só alguns estão a dar a volta por cima. Na Índia, são quase 1,4 mil milhões de pessoas em risco, com uma organização sanitária muito deficiente e onde uma das metas maiores para a saúde pública, hoje, é acabar com a defecação na via pública. Se juntarmos a Europa, Estados Unidos da América, Austrália e Japão, onde a vacinação vai fazendo o seu caminho, temos menos pessoas em risco do que na União Indiana. Há demasiadas desigualdades para que se possa dizer que o mundo já superou esta pandemia.

É por isto e também por razões científicas e éticas que o certificado de imunidade de que se fala para a União Europeia (EU) é uma fraude no seu conceito, nos resultados pretendidos e na forma como está a ser apresentado. Querem imposição de vacinação obrigatória para que se aceda a um país da UE? Podem impor essa necessidade legal. Mas não podem esconder que isso será limitar a circulação na Europa a milhares de milhões de pessoas, será uma forma encapotada de tornar a vacinação compulsiva e irá criar uma falsa noção de segurança.

Por favor, mais uma vez peço a quem decide. Decidam com cabeça e não com emoção. Deixem-se de decisões “políticas”.