Desço uma rua antiga de sentido único e de repente vejo subir, a abrir, um carro em contra-mão. Paro porque percebo que ele não vai parar, e quando passa ao meu lado em vez de um pedido de desculpas, um sinal de gratidão por ter evitado um choque e ter encontrado forma de ele poder passar, ou uma frase tipo “não vi o sinal”, recebo uma ofensa em toda a linha. Embora eu preferisse não expor aqui que se tratava de um taxista, era realmente um taxista que subia com o carro cheio de jovens clientes para um hostel no coração da cidade. Não pretendo alimentar nenhuma polémica acerca dos taxistas porque não é esse o ponto desta crónica. Conheço muitíssimos bons profissionais em quem confio inteiramente, e se enuncio este facto é apenas para sublinhar que é tecnicamente impossível um taxista desconhecer que aquela rua de Lisboa antiga apenas desce, não sobe. É assim há séculos.

O meu ponto, nesta crónica, é focar no fenómeno universal que dá pelo nome de road rage e é como um vírus a que ninguém é imune. Uma doença que ataca e contamina todos, sem excepção. Passada a perplexidade da cena em que fui verbalmente agredida sem ter feito absolutamente nada e sem culpa absolutamente nenhuma, confesso que no instante imediatamente a seguir senti que eu própria seria capaz de agredir o condutor. E não falo apenas de palavras ou insultos, notem. Percebi que o meu instinto e, assumo, a minha vontade era dar-lhe um murro na cara e um pontapé no carro. Infelizmente todos somos vulneráveis à raiva, e quando estamos ao volante todos (mais uma vez sem excepção!) somos capazes de fazer e dizer coisas que seriam inconcebíveis no nosso estado normal. Daí tantas vezes vermos pacatos cidadãos e ternos pais de família insultarem e ameaçarem outros condutores em frente dos seus próprios filhos, ou senhoras muito bem educadas gritarem palavrões a desconhecidos, mandando-os para lugares que me abstenho de enunciar.

A road rage, ou fúria ao volante, ataca os condutores do mundo inteiro e dispara em nós mecanismos que nos levam a fazer automaticamente gestos obscenos, a trocar frases ameaçadoras e a ter instintos de aniquilar o outro. Ninguém é imune a este fenómeno, insisto, e é importante saber isto, para podermos accionar os mecanismos e automatismos que estão ao nosso alcance para neutralizar o desejo de retaliação, atenuando o ódio instantâneo. Há centenas de especialistas no mundo inteiro a estudar este tema, e alguns deles criaram cursos de traffic psychology, porque infelizmente guiar em estado de raiva latente é uma espécie de fatalidade moderna. A primeira estratégia que apontam é praticar uma condução mais defensiva do que ofensiva. Os motards sabem isso, até pela vulnerabilidade que sentem por andarem sobre duas rodas, mas é importante que todos interiorizemos esta possibilidade de antecipar os erros dos outros sem retaliar imediatamente. Como? Treinando a capacidade de admitir o erro aos outros, recordando os nossos próprios erros de condução. E porque também ninguém está livre de errar, e aquilo que condenamos hoje é muitas vezes igual a qualquer coisa que inadvertidamente fizemos ontem (ou faremos amanhã!), também vale a pena apostar no humor. Sim, no sentido de humor que nos permite ter distância crítica, sorrir, encolher os ombros e seguir em frente. É vital neutralizar em nós o instinto de vingança e travar o impulso dar uma lição ao outro. O sentido de humor pode ser um escape para situações de tensão na estrada. Já vi acontecer à minha frente e já percebi como pode ser um diluidor de nervos e tensão. Os outros irritam e enervam-nos imenso, de facto, mas quantas vezes os outros não somos nós e as nossas manobras mal feitas, inadvertidas ou repentistas?

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